Não raro nos deparamos com acusações de suposta prática dos crimes de desmatamento previstos nos arts. 38 e 38-A da Lei de Crimes Ambientais, nas quais é visível que a acusação patina num ciclo vicioso: falta prova técnica → a denúncia vaga e inepta → a própria inépcia revela a ausência de justa causa → processo penal se instaura sem base concreta.
Viola-se, com isso, até mesmo o exercício do contraditório, dada a imprecisão das imputações.
O ciclo vicioso das denúncias apressadas
O padrão se repete e compromete a legitimidade do processo penal ambiental. Não há perícia durante o inquérito (muitas vezes sequer inquérito há). O Ministério Público se contenta com a autuação do órgão ambiental para concluir o tipo de vegetação e o seu suposto estágio de regeneração, ou mesmo para afirmar, de forma genérica, que se tratava de “floresta em APP”.
Sem a prova técnica, a denúncia substitui fato por rótulo e conduta por tipo penal: escreve “destruiu floresta em área de preservação permanente” ou “destruiu vegetação em estágio médio no Bioma Mata Atlântica”, mas não diz o que efetivamente aconteceu. Não descreve como se deu a supressão, quem a realizou, quando e por qual meio.
Apesar da aparente consistência, a peça se torna genérica: não delimita datas, não individualiza condutas, não aponta a legislação complementar que permitiria enquadrar o fato na tipicidade penal. É, portanto, inepta (art. 41 do CPP) e carece de justa causa (art. 395, I e III, CPP).
O que exige o art. 38: floresta em área de preservação permanente
O art. 38 da Lei 9.605/1998 não pune qualquer intervenção em área de preservação permanente. O tipo penal fala em “destruir ou danificar floresta considerada de preservação permanente”.
Não basta, portanto, apontar a existência de vegetação em APP: é indispensável demonstrar que se tratava de floresta, entendida como formação arbórea densa, de grande porte e com cobertura contínua.
Se a supressão recai sobre gramíneas, arbustivas ou vegetação de pequeno porte, não há crime. A jurisprudência do STJ e do TJPR tem sido firme nesse ponto: não se pode ampliar o alcance do art. 38 por analogia, sob pena de violar o princípio da legalidade estrita. Se não há floresta, não há crime — no máximo, infração administrativa.
O que exige o art. 38-A: estágios de regeneração da Mata Atlântica
Já no art. 38-A, o legislador protege vegetação primária ou secundária em estágio médio ou avançado de regeneração, inserida no Bioma Mata Atlântica. O desafio aqui é distinto, mas igualmente técnico: identificar se a vegetação se enquadra nesses estágios.
A discussão doutrinária gira em torno de saber se o dispositivo seria uma norma penal em branco. O Tribunal de Justiça do Paraná já decidiu nesse sentido, compreendendo que o tipo exige a especificação da lei complementar que permite o enquadramento do que foi desmatado como estágio primário ou secundário de regeneração.
A questão não é pacífica. Mas é fato que, seja norma penal em branco ou não, é ônus do acusador, no momento do oferecimento da denúncia, especificar — com lastro em prova, não em achismo — qual era o estágio de regeneração da vegetação suprimida.
E aqui está a raiz do problema: sem uma prova técnica substancial (perícia), a acusação não consegue indicar se a área era de fato vegetação primária ou secundária, tampouco se estava em estágio médio ou avançado.
Na prática, o que se observa são denúncias que se limitam a repetir a fórmula legal — “vegetação em estágio médio de regeneração” — sem explicar o que realmente sustenta essa imputação.
Materialidade: o crime que exige ciência, não suposição
Tanto na modalidade do art. 38 quanto no art. 38-A, a materialidade depende de laudo pericial, de prova minimamente científica.
Não basta a narrativa do fiscal, a lavratura do auto de infração ou a menção a alertas de satélite. É indispensável a perícia que comprove, de forma técnica, se havia floresta em APP (art. 38) ou se a vegetação correspondia aos estágios de regeneração da Mata Atlântica (art. 38-A).
Sem esse exame, o processo nasce sem justa causa. Carente de prova fundamental a respeito da materialidade do que se pretende apurar em juízo. Sem justa causa, é difícil a vida do acusador, que constrói narrativas sem peças essenciais à sua imputação.
O triângulo da acusação válida
Para que uma denúncia de desmatamento seja juridicamente sustentável, três requisitos são indispensáveis:
- Complementação normativa clara: apontar a legislação que define floresta em APP ou os estágios de regeneração da Mata Atlântica, bem como os indícios que permitem a conclusão de que o que foi desmatado se encaixa nessas normas.
- Prova técnica: estabelecer a materialidade, seja quanto à existência de floresta, seja quanto ao estágio de regeneração.
- Descrição da conduta e da autoria: indicar quem fez o quê, quando, como e em qual contexto.
Na ausência de um desses três pilares, a denúncia se torna frágil. Faltando dois ou mais, não deveria sequer ter sido recebida.
Conclusão
Os crimes de desmatamento previstos nos arts. 38 e 38-A da Lei de Crimes Ambientais exigem rigor técnico e probatório. Não é qualquer intervenção em APP que configura o crime do art. 38, nem qualquer corte de vegetação que caracteriza o 38-A. Ambos pedem prova pericial qualificada, complementação normativa explícita e narrativa fática consistente.
Quando o Ministério Público oferece denúncias sem esses elementos, instaura-se um processo penal no vazio: acusações genéricas, baseadas em autos de infração, que ignoram a necessidade de corpo de delito. O resultado é um ciclo vicioso: denúncias ineptas, processos sem justa causa e constrangimento ilegal.