Em muitas empresas, a cultura de metas é vendida como símbolo de eficiência: números agressivos, múltiplos ambiciosos, bonificações generosas e o mantra silencioso do “não quero saber como, só quero o resultado”. É nesse ambiente que a cegueira deliberada na prática empresarial deixa de ser uma expressão doutrinária distante e passa a designar o risco real de transformar incentivos e omissões em imputação penal a dirigentes e administradores.
Por que a cegueira deliberada na prática empresarial virou tema de conselho
A ideia de que “não saber” protege o dirigente sempre foi sedutora. Em estruturas complexas, com cadeias decisórias longas e operações pulverizadas, é tentador imaginar que o membro da administração superior pode blindar-se com organogramas e relatórios sintéticos, delegando a execução para níveis inferiores.
O problema é que o Direito Penal – e, em particular, o Direito Penal Empresarial – não trabalha apenas com o que o dirigente efetivamente sabia, mas com aquilo que ele decidiu não saber diante de sinais insistentes de irregularidade. A cegueira deliberada nasce justamente nesse espaço: quando a alta gestão escolhe manter distância da realidade operacional para preservar o conforto de uma ignorância conveniente.
No blog Lucchesi Advocacia, já tratei da pergunta básica – afinal, o que é a cegueira deliberada? – mostrando como a figura foi importada de forma pouco rigorosa para o Brasil e utilizada como atalho para ampliar o alcance do dolo em casos complexos.
Neste novo texto, o foco desloca-se para a prática empresarial: o que acontece quando a cultura de metas cria o terreno perfeito para que essa imputação prospere.
Da cultura de metas à cegueira deliberada na prática empresarial
Não há nada de ilegítimo em estabelecer metas ambiciosas, vincular parte da remuneração variável ao desempenho ou pressionar por eficiência. O problema surge quando a cultura de metas passa a funcionar como estrutura de incentivo à indiferença: importa apenas o número entregue, pouco importa o caminho percorrido.
Esse risco aparece com nitidez em alguns cenários recorrentes: metas de redução de custo incompatíveis com o cumprimento integral de normas ambientais; objetivos de aumento de faturamento em áreas reguladas sem expansão proporcional da equipe de compliance; prazos comerciais inalcançáveis sem “atalhos” em licitações ou contratos com o poder público. A mensagem implícita é sempre a mesma: “faça acontecer, o resto a gente vê depois”.
Em contextos assim, o dirigente não precisa mandar que ninguém desrespeite a lei. Basta que tolere sinais de alerta, deixe de perguntar quando os resultados parecem “bons demais para ser verdade”, ignore relatórios internos incômodos ou isole, em gavetas, pareceres que apontam para riscos difíceis de administrar. A cegueira deliberada na prática empresarial se materializa justamente na soma dessas pequenas decisões de não ver.
Do ponto de vista dogmático, é aqui que se desloca o eixo entre culpa e dolo: quando a omissão em conhecer deixa de ser mera negligência e passa a integrar um projeto consciente de maximização de resultados, ainda que ao preço de violar a lei.
Incentivos, omissões e o elemento subjetivo na responsabilização de dirigentes
A discussão sobre cegueira deliberada não é apenas terminológica. Ela diz respeito ao elemento subjetivo que autoriza a condenação por crime doloso. Se a lei não pune determinada conduta a título de culpa, não é admissível reconstruir, por via interpretativa, um “dolo por presunção” baseado apenas na posição hierárquica do dirigente.
Na obra Punindo a culpa como dolo: o uso da cegueira deliberada no Brasil, desenvolvi de forma sistemática essa crítica: boa parte da jurisprudência equipara a simples ausência de diligência à aceitação consciente do resultado, punindo a culpa como se dolo fosse, em franca tensão com o princípio da legalidade e com a própria estrutura do tipo subjetivo.
Transpondo isso para a prática empresarial, o ponto central é perceber que incentivos e omissões não são neutros. Quando a alta gestão cria mecanismos que tornam previsível – ou mesmo inevitável – o descumprimento de normas, fecha os olhos para alertas e “corta” a informação incômoda que sobe na cadeia decisória, aproxima-se perigosamente de um cenário em que tribunais passam a ver dolo onde, em tese, haveria apenas falha organizacional.
Isso não significa que todo dirigente em ambiente de metas agressivas deva ser tratado como autor doloso de qualquer ilícito que ocorra na ponta. Significa, porém, que a forma como a empresa estrutura seus fluxos de informação, canais de denúncia, linhas de reporte e mecanismos de resposta a red flags será determinante para a leitura do elemento subjetivo.
Cegueira deliberada não é atalho para punir dirigentes: o que a boa dogmática exige
Em termos técnico-penais, a cegueira deliberada – tal como construída no direito anglo-saxão – pressupõe um padrão bem mais exigente do que o rótulo permite supor. Não basta que o agente “pudesse saber”; é necessário que ele tenha consciência de um risco altamente provável e, mesmo assim, adote uma atitude ativa de se manter ignorante, recusando deliberadamente informações acessíveis e relevantes.
Quando essa figura é transposta, de forma acrítica, para o Direito Penal brasileiro, corre-se o risco de transformá-la em um “comodín” para condenar quem ocupa cargos de direção, sem reconstruir de forma precisa o conteúdo do conhecimento, o grau de probabilidade percebido e as oportunidades concretas de afastar a dúvida. É justamente contra esse uso inflacionado que se dirige a crítica de parte expressiva da doutrina – e que retomo em minha pesquisa de longa duração.
Do ponto de vista das empresas, o recado é claro: não há neutralidade na escolha de permanecer distante. A opção por estruturas opacas, relatórios que sobem filtrados, conselhos que se reúnem sem agenda informativa robusta e diretoria que “não lê” alertas relevantes será lida, em investigações complexas, como indício de que a ignorância era menos um dado da realidade e mais uma estratégia de autoproteção.
Como alinhar metas, governança e defesa: o que a administração superior pode fazer
Se a cultura de metas não vai desaparecer – e não deve desaparecer em empresas competitivas –, o desafio é alinhar governança, compliance e estratégia defensiva para que o incentivo a resultados não se converta em imputação dolosa.
Isso passa, em primeiro lugar, por reconhecer que a alta administração não pode viver de relatórios celebratórios. É necessário estabelecer trilhas de decisão documentadas, prever espaços formais para a apresentação de riscos (v.g., pauta fixa de compliance em reuniões de diretoria e conselho), reforçar a autonomia de áreas técnicas e garantir canais em que a informação crítica não seja estrangulada por interesses imediatos.
Em segundo lugar, é preciso criar mecanismos de resposta que demonstrem, de forma verificável, que a empresa leva a sério os sinais de irregularidade: investigações internas independentes, revisão de incentivos quando necessário, correção de rota em contratos e operações sensíveis. A ausência de reação, quando o problema é conhecido, pesa mais, do ponto de vista penal, do que qualquer slogan institucional.
Por fim, quando a crise já está instalada – operação de busca e apreensão, intimações para depor, abertura de inquérito –, a articulação entre a cultura interna e a atuação técnica em investigação torna-se decisiva. A forma como a empresa reconstrói seu histórico de decisões, explica seus incentivos e demonstra que não estimulou uma lógica de “não pergunte, não conte” é o que separa, muitas vezes, a narrativa de cegueira deliberada da reconstrução honesta de uma falha organizacional.
Conclusão: metas ambiciosas não precisam caminhar com cegueira deliberada
A experiência brasileira mostra que, em contextos de grande exposição regulatória, a cultura de metas mal calibrada pode ser lida como cultura de indiferença. Quando esse quadro se combina com estruturas opacas e omissões sistemáticas, abre-se espaço para que investigações e sentenças invoquem a cegueira deliberada na prática empresarial como fundamento para responsabilizar dirigentes.
Evitar esse cenário não passa por renunciar à ambição, mas por estruturar um modelo de gestão que permita ver e reagir: fluxos informativos robustos, incentivos alinhados à conformidade, documentação consistente de decisões e atuação técnica qualificada quando o risco se converte em investigação.
Em última análise, o dirigente que escolhe enxergar – que constrói condições institucionais para saber o que acontece na própria empresa – reduz, e muito, a probabilidade de ver seu nome associado a uma narrativa de cegueira deliberada que, na prática, transforma cultura de metas em imputação penal.



