Leniência, colaboração e acordos: como não transformar defesa em confissão

Negociar em contexto de crise nunca é neutro. Quando a empresa se vê diante de uma investigação relevante, leniência, colaboração e acordos rapidamente aparecem como “solução” para encerrar o problema e preservar a reputação. O risco é outro: sem método, esses instrumentos transformam defesa em confissão, dissolvem a estratégia em várias frentes e expõem desnecessariamente executivos e a própria pessoa jurídica. O objetivo deste texto é justamente o oposto: mostrar como sincronizar frentes, preservar a estratégia e negociar sem autoincriminação.

Por que leniência, colaboração e acordos entraram na pauta da administração superior

Nos últimos anos, o ambiente de negócios no Brasil se tornou mais regulado, mais monitorado e muito mais sensível a temas de integridade. Empresas que interagem com o poder público, atuam em setores regulados ou disputam mercados concentrados convivem com uma constelação de órgãos: controladorias, tribunais de contas, Ministérios Públicos, agências reguladoras, CADE, CVM, autarquias setoriais.

Nesse cenário, leniência, colaboração e acordos deixaram de ser ferramentas episódicas e passaram a compor o vocabulário cotidiano de conselhos, diretorias e comitês de auditoria. A alta administração é cobrada por investidores, credores e reguladores a “dar uma resposta” rápida. É compreensível que a primeira ideia seja “cooperação ampla e imediata”. O problema é que a pressa, nesse terreno, costuma cobrar juros altos: negociações apressadas cristalizam narrativas, travam alternativas e abrem espaço para enquadramentos penais que poderiam ter sido evitados.

Leniência, colaboração e acordos: quando a cooperação mal conduzida vira confissão

Na prática, o desvio começa cedo. Reuniões exploratórias são marcadas às pressas, sem mapeamento prévio de fatos, sem matriz de riscos individuais e sem clareza sobre qual autoridade está em qual papel. Executivos bem-intencionados antecipam detalhes de contratos, fluxos de pagamento, e-mails e conversas informais, muitas vezes sem qualquer salvaguarda formal sobre o caráter da reunião ou sobre o uso futuro dessas informações.

Em paralelo, documentos e bases de dados são entregues sem delimitação de escopo, sem registro claro de cadeia de custódia e sem coordenação com uma investigação interna séria. Em pouco tempo, a empresa percebe que já entregou boa parte da prova que poderia servir à própria defesa, mas ainda não tem um desenho minimamente seguro de leniência, colaboração e acordos em cada frente. Em vez de construir um espaço de negociação, consolidou um acervo probatório contra si.

Esse é o ponto: o problema não está em cooperar. O problema está em cooperar sem método, sem governança e sem visão integrada do tabuleiro.

Sincronizar frentes antes de negociar: penal, regulatória, concorrencial e societária

Nenhuma empresa negocia apenas em uma mesa. Uma mesma crise costuma abrir, simultaneamente, ao menos quatro planos: o penal (investigações e acordos com Ministérios Públicos), o administrativo e regulatório (CGU, agências, controladorias), o concorrencial (CADE e autoridades antitruste) e o societário/mercado de capitais (CVM, deveres de disclosure, deveres fiduciários de administradores).

Se cada frente age de forma autônoma, a estratégia implode: o que se admite num acordo concorrencial pode ser incompatível com a linha de defesa penal; o que se assume numa leniência administrativa pode criar passivos societórios ou trabalhistas inesperados. Por isso, antes da primeira conversa substantiva com qualquer autoridade, é indispensável que a empresa estruture um verdadeiro comitê de crise, com advogados especializados, compliance, auditoria e, quando necessário, comunicação estratégica.

Esse núcleo é responsável por unificar cronologias, mapear riscos por pessoa e por tema, definir limites de disclosure e alinhar quais mensagens podem – e quais jamais devem – ser veiculadas em cada ambiente.

Leniência, colaboração e acordos: o que cada instrumento efetivamente entrega — e a que custo

Embora frequentemente mencionados no mesmo fôlego, leniência, colaboração e acordos são instrumentos distintos, com públicos-alvo, benefícios e custos muito diferentes.

A leniência, em regra, tem foco na pessoa jurídica e busca recompor a relação da empresa com o Estado: cessar condutas, reparar danos, colaborar na investigação. Em troca, pretende reduzir sanções administrativas, afastar certas restrições e dar previsibilidade para a continuidade das atividades. O preço costuma ser alto: relato detalhado de fatos, entrega de documentos e, muitas vezes, identificação de pessoas físicas envolvidas, em linha com os critérios adotados nos acordos de leniência da Controladoria-Geral da União (https://www.gov.br/cgu/pt-br/assuntos/integridade-privada/acordo-leniencia).

A colaboração premiada é voltada a pessoas físicas. O colaborador oferece informações relevantes, contextualizadas e comprováveis, em busca de benefícios penais proporcionais à utilidade da prova. Aqui, o risco para a empresa é evidente: uma colaboração desalinhada pode arrastar a pessoa jurídica para um enredo sobre o qual ela não teve qualquer controle narrativo.

O acordo de não persecução penal ainda é outro instituto: voltado a determinados delitos e condições específicas, pode ser uma saída racional para dirigentes, desde que encaixado na estratégia institucional e nas demais frentes em curso. Acordos concorrenciais, termos de compromisso e soluções negociadas com reguladores completam o quadro e se somam às possibilidades de como uma empresa pode encerrar um processo criminal com um acordo, sem perder de vista os efeitos cruzados entre penal, regulatório e reputação.

Em todos os casos, a pergunta que a administração superior precisa fazer é simples e dura: o que este instrumento efetivamente entrega à empresa e às pessoas envolvidas — e qual é o custo probatório, narrativo e reputacional de cada cláusula?

Como não transformar defesa em confissão: negociar sem autoincriminação e preservar a estratégia

Negociar sem autoincriminação não é um truque argumentativo; é uma disciplina que começa muito antes da mesa com a autoridade. Essa disciplina passa, em primeiro lugar, por uma investigação interna minimamente séria, com cronologia dos fatos, entrevistas estruturadas, análise documental e preservação correta de evidências.

Com base nesse mapa, a empresa define quem pode falar, em que extensão, em qual ambiente e sob quais garantias. Fatos sensíveis – isto é, fatos que podem ser lidos como confissão de conduta típica – só devem ser levados à mesa quando: (i) houver clareza sobre o instrumento que está sendo negociado; (ii) o desenho de benefícios e contrapartidas estiver minimamente amadurecido; e (iii) houver registro preciso do contexto, do escopo e do uso permitido da informação.

A linguagem também importa: é muito diferente explicar um modelo de negócios, um fluxo de aprovação ou uma falha de controle do que atribuir, a si mesmo, dolo, ciência ou participação pessoal em condutas que a lei descreve como crime. O ritmo faz parte da proteção: suspender reuniões, trazer questões complexas para análise interna, responder por escrito quando necessário – tudo isso ajuda a preservar a estratégia e a evitar o improviso que transforma dúvida em reconhecimento.

Um caso em que a estratégia impediu que a cooperação se tornasse confissão

Imagine uma empresa de infraestrutura sob investigação concorrencial, regulatória e penal, em virtude de suposta prática concertada em licitações. Parte da gestão, pressionada por bancos e por investidores, defende “assinar logo o que for preciso” para virar a página. Em vez disso, a empresa decide estruturar um comitê de crise, conduz uma investigação interna robusta, identifica fragilidades de controle, mas também pontos fortes de sua posição e grada os riscos por pessoa física.

Com essa base, a estratégia é calibrada: primeiro se negocia, de forma coordenada, com a autoridade concorrencial; em seguida, com o órgão de controle administrativo; por fim, com o Ministério Público, explorando alternativas que vão de acordos penais a cenários em que a prova disponível é melhor aproveitada em juízo. Em cada mesa, a empresa evita admissions desnecessárias, controla o fluxo de documentos e só formaliza compromissos depois de testar sua compatibilidade com as demais frentes.

No fim, há sanções relevantes, como seria de se esperar em qualquer caso sério, mas não há colapso probatório produzido pela própria empresa. A cooperação existe – e é reconhecida –, mas não se confunde com uma confissão descontrolada.

Ao que interessa: cooperar com método é dever da alta administração

Para empresas expostas ao Estado, à regulação ou à mídia, leniência, colaboração e acordos não são atalhos para “acabar com a dor de cabeça”; são decisões estruturantes de governança penal. A alta administração tem o dever de garantir que a cooperação seja feita com método: frentes sincronizadas, estratégia preservada, pessoas protegidas e risco de autoincriminação sob controle.

Quando a crise surge, a tentação de “resolver tudo na primeira reunião” é grande. Justamente por isso, o momento decisivo é anterior: preparar a casa, organizar a prova, desenhar o tabuleiro e definir com clareza o espaço de cooperação possível. É ali, antes da primeira palavra dita à autoridade, que se decide se a negociação será instrumento de defesa – ou o começo de uma confissão.

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