Em agosto do ano passado, lancei o livro “Punindo a culpa como dolo: o uso da cegueira deliberada no Brasil” (Editora Marcial Pons, 2018). Desde então, muitos têm me perguntado sobre o que se trata o livro, e no que o tema da cegueira deliberada influi no meu dia-a-dia na advocacia criminal.

O livro é fruto de minha tese de doutorado, defendida em setembro de 2017 na UFPR. Na tese, busquei explorar diversas decisões judiciais proferidas no Brasil entre 2006 e 2016 que de alguma forma explorassem a questão da cegueira deliberada.

De acordo com o Código Penal brasileiro, só há crime quando uma pessoa realiza uma ação criminosa com dolo ou com culpa. Um crime é doloso quando o autor do fato agiu conscientemente e com vontade de cometer aquele crime. Já o crime é dito culposo quando o resultado criminoso é provocado por um descuido do autor, que age com imprudência, negligência ou imperícia. Via de regra, o Direito Penal brasileiro somente pune crimes dolosos. A punição de crimes culposos é excepcional, como por exemplo no homicídio ou na lesão corporal.

Há mais de uma década, juízes brasileiros vêm usando a “teoria da cegueira deliberada” para condenar por crime doloso acusados que alegam desconhecer algum fato relacionado ao crime que foram acusados — por exemplo, o banqueiro que diz não conhecer que os recursos remetidos pelo cliente do banco ao exterior tinham origem ilícita, sendo acusado de lavagem de dinheiro. Os critérios para dizer que há dolo nesses casos envolvendo desconhecimento (ou, melhor, envolvendo ausência de comprovação de conhecimento pela acusação) têm sido estabelecidos caso a caso, sem qualquer coerência ou compromisso com a lei. A justificativa para isto é que a cegueira deliberada seria utilizada pelos tribunais dos Estados Unidos para identificar o dolo, sendo possível trazer este mesmo raciocínio ao Brasil.

A partir do estudo de casos, pude identificar alguns critérios comuns para a aplicação da cegueira deliberada como substituto do dolo eventual: o autor deve, cumulativamente, (1) ter ciência da elevada probabilidade de estar envolvido em algum crime, (2) manter-se indiferente quanto a tal ciência e (3) evitar aprofundar o seu conhecimento acerca do crime em que desconfia estar envolvido.

Essa lógica tem diversos problemas. Primeiro: o direito penal americano, suposta origem da teoria, possui critérios de imputação muito diferentes daqueles impostos pela legislação penal brasileira, o que não é (mas deveria ser) explorado antes da importação de conceitos jurídicos. Segundo: não há correspondência entre os conceitos de willful blindness e cegueira deliberada, visto que muitos juízes acrescentam critérios inexistentes no direito americano, como é o caso da exigência de “indiferença” por parte do autor. Terceiro: a cegueira deliberada não possui amparo na lei brasileira, e nem poderia ter, pois a sua lógica é incompatível com o nosso sistema.

Do modo como aplicada pelos tribunais brasileiros, a cegueira deliberada funciona como uma categoria que visa à expansão do alcance do dolo para além do campo delimitado pelo legislador brasileiro, invadindo o território da culpa. Como a punição da culpa é excepcional, não sendo possível em diversos crimes como lavagem de dinheiro, caracterizar um fato como doloso ou culposo influi diretamente na possibilidade de sua punição.

O dolo somente pode ser reconhecido nos casos em que seus pressupostos legais já estejam presentes. Sendo assim, a cegueira deliberada não pode alterar nem ampliar o conceito legal de dolo.

Se os critérios para identificação da cegueira deliberada no Brasil são diferentes dos critérios para a identificação da willful blindness e se cegueira deliberada deve corresponder ou ao menos se inserir no conceito de dolo, não há sentido em se desenvolver uma teoria nesses termos. A tentativa de se englobar pela cegueira deliberada condutas que não seriam puníveis pela aplicação dos critérios legais do dolo viola o princípio da legalidade.

Para conhecer mais sobre a cegueira deliberada, inclusive com um resumo dos principais casos em que ela foi aplicada no Brasil, clique aqui (link para http://lucchesi.link/marcialpons).

Guilherme Brenner Lucchesi
guilherme@lucchesi.adv.br