O direito penal deveria ser um instrumento de última resposta, um freio para condutas realmente lesivas. Porém, quando o assunto são os crimes ambientais muitas vezes se percebe o oposto: a utilização do direito penal como atalho para punir toda e qualquer irregularidade, com a criminalização de infrações simples. A Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/98) cristalizou esse problema. Criada para proteger a fauna, a flora, os recursos naturais e o equilíbrio ecológico, a norma acabou convertendo infrações de baixa relevância em tipos penais abertos, mal redigidos e de aplicação automática. O resultado é que empresas, empresários e gestores vêm sendo arrastados ao banco dos réus por condutas que, em muitos casos, poderiam ser resolvidas com advertência ou multa.

A inversão da lógica: o Direito Penal como primeira resposta

Um dos pontos mais criticados da Lei n.º 9.605/1998 é a inversão da lógica do direito penal. O que deveria ser exceção — a punição criminal — virou ferramenta de rotina. O resultado? Infrações que deveriam ser sanadas com medidas administrativas — como uma licença vencida ou o descumprimento de trâmites burocráticos — são denunciadas criminalmente sem que se avalie a gravidade concreta da conduta.

A origem desse descompasso está na própria estrutura da lei. Boa parte dos tipos penais ambientais simplesmente copia as infrações administrativas previstas no Decreto n.º 6.514/2008. A única diferença está no rótulo da sanção: multa ou detenção. A conduta, muitas vezes, é a mesma.

Essa sobreposição de esferas gera três problemas graves: (i) dificulta a identificação de quando o Direito Penal realmente se justifica; (ii) multiplica sanções pelo mesmo fato, em violação ao princípio do ne bis in idem; e (iii) transfere à persecução penal o que deveria ser resolvido por meio de políticas públicas e regulação técnica.

Na prática, o que se vê é a criminalização de condutas inofensivas ou meramente formais, tratadas como se fossem ameaças graves ao meio ambiente. O Direito Penal, que deveria proteger os bens mais relevantes, acaba servindo à burocracia — e se afasta da sua função legítima.

O caso clássico: operação sem licença ambiental

Entre as acusações de suposta prática de crimes ambientais,  a mais frequente é de infringência ao art. 60 da Lei n.º 9.605/1998, que criminaliza o exercício de atividade potencialmente poluidora sem a devida licença ou autorização ambiental:

Art. 60. Construir, reformar, ampliar, instalar ou fazer funcionar, em qualquer parte do território nacional, estabelecimentos, obras ou serviços potencialmente poluidores, sem licença ou autorização dos órgãos ambientais competentes, ou contrariando as normas legais e regulamentares pertinentes: Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa, ou ambas as penas cumulativamente.

A ampla gama de verbos do tipo penal faz com que ele seja um dos enquadramentos mais comuns em investigações e denúncias contra empresários e empresas dos mais variados setores.

Na prática, o dispositivo atinge desde empreiteiras responsáveis por construções, até donos de postos de combustíveis, oficinas mecânicas e concessionárias que realizam troca de óleo, indústrias de qualquer porte e transportadoras — especialmente as que lidam com produtos perigosos.

Basta que, em uma fiscalização, se constate a ausência de uma licença válida para a construção, reforma, ampliação, instalação ou funcionamento de qualquer empreendimento para que a autoridade ambiental represente criminalmente contra o responsável legal.

E há um ingrediente a mais que deixa a questão ainda mais confusa: o art. 60 da Lei de Crimes Ambientais é uma norma penal em branco. Isso significa que depende de outra norma complementar para que se concretize. No caso dela, de norma que imponha a necessidade de licenciamento ambiental para a atividade.
Esse cenário se torna ainda mais complexo porque a exigência de licenciamento ambiental não depende apenas de normas federais. Nos termos do que já decidiu o STF, Estados e Municípios também podem editar regras próprias que ampliam o rol de atividades sujeitas a licenciamento, complementando a norma penal. Isso significa que uma empresa pode estar formalmente dispensada de licença segundo regras nacionais, mas ainda assim estar sujeita à obrigação de licenciar sua atividade com base em normas locais.

Na prática, isso amplia os riscos penais para empresários e gestores, pois a responsabilização criminal pode ocorrer com base em uma norma estadual ou municipal muitas vezes desconhecida pelo empreendedor. Em outras palavras, o enquadramento penal não está condicionado a uma lista única e padronizada, mas a uma teia normativa descentralizada que exige atenção redobrada do empresário/empreendedor.

Por que isso importa para sua empresa?

A fronteira entre sanção administrativa e crime ambiental nem sempre é clara — mas ignorá-la pode custar caro. Muitos gestores ainda subestimam o peso de responder penalmente por situações que, em tese, poderiam ser resolvidas com regularização ou multa. Para evitar essa armadilha, é indispensável: (i) Monitorar prazos de licenças e renovações; (ii)  Investir em compliance ambiental real, com auditorias e registros técnicos; e (iii) Produzir documentação capaz de comprovar o baixo potencial poluidor de atividades questionadas.
Num cenário de fiscalização cada vez mais rigorosa — e leis que expandem o direito penal para dentro da rotina administrativa — a prevenção é menos custosa do que enfrentar um processo criminal.

Mesmo com todos os cuidados — controle de licenças, auditoria técnica, gestão documental — é possível que empresas e empresários acabem investigados ou denunciados pela suposta prática do crime previsto no art. 60 da Lei de Crimes Ambientais. Nesses casos, é essencial contar com advocacia especializada não apenas em Direito Penal e Processual Penal, mas também com domínio técnico do Direito Ambiental.

Essa combinação é o que permite identificar, com precisão, se a melhor estratégia é atacar a própria materialidade do delito, demonstrando a ausência de tipicidade penal, ou se é o caso de avaliar a celebração de acordos processuais, como a suspensão condicional do processo ou o Acordo de Não Persecução Penal.

Esses instrumentos, quando cabíveis, podem evitar a condenação e os danos causados pelo processo criminal à reputação e ao funcionamento da empresa. Para entender melhor quando e como utilizar esses mecanismos de defesa, leia também nosso artigo “Como uma empresa pode encerrar um processo criminal com um acordo?”.

Conclusão: ilícito penal ou administrativo?

Se o direito penal ambiental perde seu filtro de ultima ratio, transforma-se em ferramenta de gestão burocrática — e a sanção perde legitimidade. Crimes graves exigem resposta grave. Infrações formais exigem correção técnica e administrativa.

No Blog Lucchesi, seguimos de olho em como essa fronteira é testada todos os dias nos tribunais. E você, sua empresa ou seu cliente estão preparados para distinguir onde termina a multa e onde começa o processo penal?