Foi-se o tempo em que a resposta para essa pergunta seria, pura e simplesmente, “nada”. Para além de célebres obras literárias – tais quais as de Philip K. Dick e Isaac Asimov, que há décadas já se debruçavam imaginativamente sobre a inteligência artificial – e cinematográficas – como Harrison Ford caçando androides que descumpriram os limites de sua programação – a questão da responsabilização de seres humanos e pessoas jurídicas por “atos praticados” por máquinas dotadas de “sistemas autônomos de comportamento” já nos alcançou.
O Caso Uber – acidente fatal em 2018
Em 2018, noticiou-se mundialmente o trágico acidente fatal envolvendo um carro autônomo da empresa Uber, que atingiu e matou uma ciclista em Tempe, Arizona (Estados Unidos da América). Segundo investigações realizadas após o fato[1], a Uber havia desabilitado a opção de frenagem de emergência no programa de direção autônoma do veículo, bem como tal programa não estava designado a alertar o operador – a motorista de segurança que se encontrava no interior do veículo no momento do fato – quando do reconhecimento da colisão iminente pelo sistema.
Embora nesse caso os prosecutors do County’s Attorney’s Office – órgão que, nos Estados Unidos, exerce função semelhante ao Ministério Público brasileiro em sede criminal – não tenham imputado acusações de natureza criminal contra a empresa[2], fato é que a responsabilização criminal por ato de um carro autônomo de fato foi analisada e discutida em um caso real, que inclusive já data de dois anos.
O dilema na programação
Com a vertiginosa evolução tecnológica característica dos tempos atuais, as novas tecnologias automotivas e sistemas de programação de “inteligência artificial” (usa-se o termo aqui sem qualquer pretensão de rigor técnico-científico, para designar sistema autônomo que não demande operação humana direta e constante), em breve surgirão novos casos semelhantes – quiçá mais graves –, que desafiarão o direito penal a resolver a seguinte questão: quando pode uma pessoa física e/ou jurídica ser criminalmente responsabilizada por um ato praticado por um veículo/objeto/sistema autônomo?
O ponto central da resposta, possivelmente, repousará na programação do sistema autônomo, pois alguém de fato tem de inserir no sistema de inteligência os protocolos fundamentais que regerão o comportamento do “robô”. No caso do acidente envolvendo o carro Uber, acima referido, o resultado parece ter sido causado por falhas ou opções deliberadas tomadas pelos programadores do sistema do veículo – como por exemplo a inabilitação da frenagem emergencial e a inexistência de alerta ao operador (pessoa física).
Agora, pense-se que a programação desses sistemas terá de se deparar com questões do tipo: entre colidir contra outro carro ou atropelar um pedestre, o que o carro autônomo deverá fazer? E se forem dois pedestres? E entre colidir contra um casal de idosos ou contra uma jovem mãe com uma criança de colo, o que o carro deverá fazer? Será possível que seres humanos encarregados de programar tais sistemas possam decidir, antecipadamente, sobre quais vidas devem ser preservadas e quais podem ser sacrificadas numa situação de emergência?
Nesses casos, alguém terá de fazer essas escolhas antecipadamente e programá-las nas máquinas. Depois, quando o resultado desastroso se manifestar na forma de vidas humanas ou alguma outra forma de prejuízo, essas pessoas – físicas ou jurídicas – poderão ou deverão responder criminalmente pelas vidas perdidas e dano causado?
O futuro da questão
Pense-se, ainda, que os usos da “inteligência artificial” certamente não se limitam a veículo autônomos. Não somente outros meios de transporte – como aviões e navios – utilizam cada vez mais esse tipo de tecnologia, mas diversos outros serviços podem vir a ser alterados com a utilização de programas destinados tornar desnecessária a supervisão constante de seres humanos. Não é desarrazoado imaginar, por exemplo, o uso de sistemas autônomos para a seleção de pacientes que ocuparão números limitados de leitos de UTIs, possivelmente ensejando a morte daqueles que não vieram a ser contemplados com vagas. Ou, por exemplo, um sistema autônomo tenha de escolher entre permitir o alagamento de uma ou outra cidade a fim de impedir o rompimento total de uma barragem que se situa próxima de ambas.
O avanço tecnológico que permite que essas hipóteses virem realidade está posto. A questão, quem sabe, é apenas de tempo. Quando vidas forem perdidas em decorrência das escolhas antecipadamente programadas em sistemas criados por seres humanos, o direito penal será – por bem ou por mal – chamado à discussão.
E você? O que acha da possível relação entre os “robôs” e o direito penal? Responda nos comentários abaixo!
Ivan Navarro Zonta
ivan@lucchesi.adv.br
[1] Fonte: https://www.nbcnews.com/tech/tech-news/self-driving-uber-car-hit-killed-woman-did-not-recognize-n1079281
[2] https://www.bbc.com/news/technology-47468391
*A temática surgiu a partir da disciplina Direito Penal do Século XXI, ministrada pelos Professores Doutores Alaor Leite e Paulo César Busato, no Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR.
Muito interessante os pontos levantados para reflexão. Parabéns!
A temática que ora parecia distante (coisa de filme), está cada vez mais perto de nosso cotidiano.
Saberia dizer se já existe algum estudo ou obra que aborde os critérios de imputação em casos desse tipo?
Abraços
Muito obrigado pelo questionamento, Eduardo!
O tema realmente é instigante, sendo que já há material aprofundando algumas das questões pontuadas no texto.
Nossa primeira recomendação seria a obra Veículos autônomos e direito penal, organizada pelos Drs. Heloisa Estellita e Alaor Leite (http://www.marcialpons.com.br/veiculos-autonomos-e-direito-penal/). Uma pequena prévia da temática já foi abordada pelos dois colegas no Jota: https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/penal-em-foco/veiculos-autonomos-e-direito-penal-20052019.
Dois outros trabalhos (em inglês) que abordam a temática e estão disponíveis para leitura online são os seguintes:
If robots cause harm, who is to blame? Self-driving cars and criminal liability – https://nclr.ucpress.edu/content/19/3/412.full.pdf+html;
The Google made me do it: the complexity of criminal liability in the age of autonomous vehicles – https://digitalcommons.law.msu.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1189&context=lr.
Com certeza, em breve teremos muitos novos trabalhos sobre o assunto.
Boa leitura!