Quando a atuação do advogado passa da busca legítima de elementos para a violação de cautelares impostas ao cliente?
Na nossa postagem anterior, alertamos para a tendência de criminalizar a advocacia consultiva. Hoje, o foco recai sobre a advocacia criminal: decisão recente do Supremo Tribunal Federal, ainda sob sigilo, reacendeu o debate sobre onde termina a investigação defensiva e onde começa a obstrução de justiça.
A decisão do Ministro Relator descreve situação na qual a linha será traçada justamente entre cliente e advogado: se a defesa virou instrumento para violar cautelares, ou se a cautelar foi usada — de modo indevido — para atingir a defesa. A análise que segue é necessariamente hipotética, pois conhecemos apenas os trechos públicos do voto.
O caso, sob a lupa do STF
O caso revela uma sequência que mistura tensão processual, estratégia defensiva e interpretações controversas.
Tudo começa com o réu solto, mas sujeito a medidas cautelares: estava proibido de utilizar redes sociais — ainda que por terceiros — e de manter qualquer contato com os demais investigados. Eis o pano de fundo.
É nesse cenário que entra em cena o advogado. Segundo consta, o defensor foi procurado por um corréu-colaborador por meio de uma rede social. O detalhe curioso: o contato partiu de um perfil de terceiro, mas o colaborador rapidamente confirmou sua identidade. O diálogo virtual evoluiu para um encontro presencial.
A partir dessas interações, o advogado captou elementos que sugeriram inconsistências na negociação da delação premiada. Entendendo haver possível nulidade, apresentou petição ao STF relatando os contatos mantidos e sustentando a tese de que o acordo estava comprometido.
Mas a leitura feita pelo Relator tomou outro rumo. Para o Ministro, os diálogos evidenciam que o réu, por meio de seu advogado, utilizou rede social por via indireta e promoveu comunicação com o corréu, ainda que mediada.
Com isso, aos olhos do Relator, teria havido violação das cautelares e tentativa de obter informação sigilosa com o fim de construir prova de defesa, configurando possível obstrução de justiça nos termos do §1.º do art. 2.º da Lei 12.850/2013.
As consequências não tardaram: nova prisão preventiva do réu e instauração de inquérito contra o advogado.
A fronteira entre defesa diligente e infração ética
O dever de buscar informação permanece intocado: sem coleta de elementos, não existe defesa efetiva. Isso inclui dialogar com outras defesas ou até com potenciais clientes. Buscar informação, em si, não é crime — é parte do ofício.
Mas forma e propósito importam. Quando o advogado percebe que não se trata de uma consulta genérica — e que o interlocutor já possui defensor constituído —, o Código de Ética exige cautela redobrada. Nesses casos, o contato deveria ser interrompido ou redirecionado ao patrono do colaborador. Persistir pode configurar infração disciplinar; transformar o diálogo em estratégia probatória, sem esse filtro, agrava a percepção de abuso.
Por outro lado, medidas cautelares impostas ao réu não se projetam automaticamente sobre seu defensor. O advogado não é extensão do cliente.
Cautelares do réu ≠ mordaça ao advogado — com ressalvas
Medidas impostas ao cliente não vinculam o defensor. Contudo, se a defesa é usada como meio de burlar a cautelar, surge a tese de participação indireta na violação — exatamente a interpretação abraçada pelo STF e que motivou a instauração de procedimento investigativo.
Obstrução: tipo penal elástico que exige freios
O § 1.º do art. 2.º da Lei 12.850/2013 pune quem “impedir ou embaraçar investigação”. A amplitude do verbo “embaraçar” facilita enquadrar condutas legítimas. Daí a necessidade de leitura restritiva, sob pena de transformar diligência defensiva em crime.
Antes de tudo, impõe-se uma advertência: como os autos ainda tramitam sob sigilo, é impossível avaliar a tipicidade da conduta sem conhecer o teor exato das conversas travadas entre defensor e colaborador. A imputação de obstrução não pode ser presumida; menos ainda baseada exclusivamente na existência do contato.
Se a conduta se limitou à extração de informações úteis para sustentar uma tese defensiva — por exemplo, a nulidade da colaboração premiada —, estamos no terreno do exercício legítimo da defesa. E mais: do exercício regulamentado da investigação defensiva, conforme previsão expressa da Resolução n.º 188/2018 do Conselho Federal da OAB, que permite ao advogado, entre outras diligências, coletar depoimentos, acessar dados e promover investigações próprias, inclusive sobre eventuais ilegalidades em provas que afetem seu cliente.
É diferente — e muito mais grave — o cenário em que se verifica um conluio probatório: por exemplo, tentativa de influenciar o conteúdo da colaboração, interferir no teor de depoimentos ou combinar o que será ou não apresentado à autoridade. Nesse caso, estaríamos diante de uma tipicidade ao menos aparente, a ser examinada pelo inquérito já instaurado.
Mas esse é o ponto central: a diferença entre defesa combativa e fraude deliberada exige prova concreta, não suposição. No caso a linha entre o exercício do direito de defesa e a participação em ato criminoso é tênue e, por isso mesmo, exige apuração técnica, sem atalhos punitivistas ou conclusões precipitadas.
O ponto cego: a prisão do cliente
Mesmo admitindo discussão sobre a conduta do advogado, a nova prisão do acusado suscita críticas robustas.
Primeiro, porque o fundamento da medida foi o descumprimento das cautelares e uma genérica “grave periculosidade” — mas a motivação real parece estar ligada à estratégia defensiva adotada.
Segundo, porque a decisão não identifica nenhum ato concreto praticado pelo réu. O único comportamento descrito é o de seu patrono.
Afastar-se desse detalhe pode comprometer um princípio basilar do processo penal: o da pessoalidade das cautelares. Afinal, não se pune por tabela. Se a sanção atinge quem não agiu, e com base em atos alheios, estamos mais próximos de uma penalidade reflexa do que de uma resposta proporcional e legítima do sistema de justiça.
Decisão que deixa dúvidas quanto à cronologia
Um detalhe curioso emerge da própria decisão: os contatos entre o advogado e o colaborador teriam ocorrido entre o final de janeiro e meados de março de 2024. Já a decisão que impôs as medidas cautelares — entre elas, a proibição de contato entre investigados e o uso de redes sociais, ainda que por terceiros — só foi proferida em 16 de maio de 2024. Se essa for mesmo a sequência dos fatos, o raciocínio da nova prisão preventiva parece sofrer de um vício básico: o de imputar ao réu o descumprimento de uma ordem que ainda não existia.
Não se está a efetuar juízo de valor sobre a estratégia da defesa ou mesmo sobre o teor dos diálogos, mas de algo mais elementar: é impossível violar uma decisão que ainda não havia sido proferida. Quando a linha do tempo entra em colisão com a lógica da imputação, acende-se uma luz de alerta que não pode ser ignorada — sobretudo quando a consequência é o recolhimento cautelar de um acusado.
Se esse é, de fato, o cenário do caso, soa questionável a decisão que decretou a prisão preventiva do cliente.
Dilema deontológico ainda sem resposta clara
O caso traz à tona um dilema interessante sobre os limites éticos da atuação defensiva. Isso porque a utilização de informações sigilosas obtidas em uma consulta informal levanta uma tensão inevitável.
De um lado, o sigilo protege o potencial constituinte, assegurando a liberdade de buscar orientação jurídica sem receio de exposição.
De outro, o advogado já formalmente constituído tem o dever de lealdade com seu cliente atual, o que impõe limites à exploração estratégica dessas informações.
Diante disso, surge a pergunta: seria suficiente, nesses casos, que o defensor apenas notificasse o interlocutor e interrompesse o diálogo? A resposta não é evidente, justamente porque o Estatuto da Advocacia e o Código de Ética não oferecem parâmetros claros para lidar com esses conflitos cruzados.
Falta regulamentação específica que antecipe esses dilemas e impeça que a advocacia combativa seja, de forma apressada, tratada como suspeita de crime.
Conclusão
A decisão do STF expõe dois riscos que, embora opostos, convivem perigosamente no mesmo cenário.
De um lado, há a possibilidade de o advogado ser convertido em longa manus do réu, operando como instrumento para violar medidas cautelares impostas judicialmente. De outro, surge o risco simétrico e igualmente grave: o de se utilizar a própria cautelar como pretexto para sufocar iniciativas legítimas da investigação defensiva.
Esse duplo movimento — ora criminalizando o defensor, ora blindando a acusação de qualquer escrutínio — ameaça deslocar o eixo do processo penal da ampla defesa e do estado de inocência para o controle da narrativa.
Reconhecer a tensão entre essas leituras é essencial. Eventual infração ética deve ser apurada, mas não pode automaticamente migrar para o campo penal. Ao mesmo tempo, a estratégia do advogado não pode ser aceita como salvo-conduto para driblar restrições judiciais.
Mas o caso analisado ainda impõe uma pergunta incômoda: é possível violar uma ordem judicial antes mesmo de ela existir? Se os contatos imputados ao réu ocorreram antes da imposição das cautelares, como sugere a própria decisão, então talvez estejamos diante de inversão temporal difícil de sustentar.
Também permanece a dúvida: buscar informações que enfraquecem uma delação é exercício da defesa ou obstrução de justiça? Sem acesso ao conteúdo integral dos diálogos, qualquer resposta será prematura.
O ponto é: defender continua a não ser crime; usar a defesa para atingir a parte — ou usar a parte para atingir a defesa — é que precisa de análise técnica, proporcional e livre de arroubos punitivistas.
Próximos passos do blog
Queríamos retomar temas de Direito Penal Econômico e compliance corporativo, mas a pauta do STF impôs novo mergulho na relação defensor–cliente. Nas próximas semanas voltaremos à interface entre operações empresariais e Direito Penal.
Sugestões de pauta são sempre bem-vindas.
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