Negociação no processo penal deixou de ser exceção. Desde a Lei 9.099/1995, que abriu espaço para composição civil, transação penal e suspensão condicional do processo, a pauta amadureceu e ganhou outra escala com o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), introduzido nacionalmente por ato do CNMP (Resolução 181/2017) e, depois, positivado no art. 28-A do Código de Processo Penal. Diferentemente dos arranjos dos Juizados, o ANPP exige confissão formal e circunstanciada; já a colaboração premiada é um negócio processual complexo, com benefícios condicionados a resultados. Em comum, ambos partem da premissa de responsabilidade do investigado — e, por isso, exigem cálculo técnico antes de sentar à mesa.
Um bom ponto de partida vem de Como chegar ao sim, de Roger Fisher e William Ury, obra associada ao Program on Negotiation de Harvard. O livro popularizou duas métricas simples e poderosas para avaliar propostas: BATNA e WATNA. BATNA é a melhor alternativa a um acordo negociado; WATNA é a pior alternativa a um acordo negociado. Com elas, comparamos a proposta com o que provavelmente aconteceria sem acordo.
Negociação no processo penal: quando faz sentido
A pergunta prática é direta: faz sentido negociar agora? O critério é comparar a proposta com o seu cenário sem acordo. Se o pacote oferecido supera a sua BATNA e reduz a sua WATNA de modo mensurável, negociar tende a ser racional. Se não supera, a pressa de “resolver logo” costuma custar caro.
Como calcular a melhor e a pior alternativa sem acordo (para defesa e para acusação)
Para a defesa, a melhor alternativa sem acordo pode ser absolvição provável, desclassificação, regime mais brando, substituição da pena, prescrição, nulidade relevante ou mesmo uma condenação com efeitos colaterais manejáveis; a pior alternativa é condenação mais gravosa (pena, regime, perda de cargo ou função), com impactos paralelos em compliance, reputação e negócios. Para a acusação, a melhor alternativa é uma ação robusta com alta chance de condenação; a pior alternativa é prova frágil, risco de absolvição e nulidades.
O poder de barganha nasce dessa simetria: quanto melhor a prova do Ministério Público, mais concessões a defesa terá de apresentar; quanto mais vulnerável a prova, maior o espaço para reduzir exigências ou simplesmente não celebrar acordo.
ANPP e colaboração premiada: diferenças que importam na mesa
No ANPP, o ponto de partida é a confissão formal e circunstanciada do fato, condição textual do art. 28-A do CPP. Esse dado tem efeitos jurídicos e práticos que extrapolam a esfera penal estrita, pois não há regra geral de blindagem do conteúdo confessado diante de outras instâncias (administrativa, civil, regulatória). Por isso, escopo, forma e custódia documental da confissão devem entrar no desenho do acordo.
Na colaboração premiada, o acordo não vale por si: os benefícios incidem na sentença (ou em decisões correlatas) se houver utilidade e corroboração das informações, com limites claros à participação do juiz na fase negocial. É um acordo para culpados qualificado: cobra resultados e pode gerar benefícios relevantes, mas não é salvo-conduto.
Negociação no processo penal: passos práticos para decidir
1. Mapeie provas e riscos. O que já existe no inquérito/processo? O que pode surgir? Quais nulidades são plausíveis?
2. Quantifique cenário sem acordo. Liste sua BATNA e WATNA — incluindo efeitos patrimoniais e regulatórios (compliance, contratos, mercado).
3. Infira o cenário da acusação. Qual é a BATNA e a WATNA do Ministério Público? Onde a prova é forte? Onde é vulnerável?
4. Desenhe termos verificáveis. No ANPP: condições proporcionais, cronograma, forma/escopo da confissão, acesso e guarda de peças sensíveis. Na colaboração: objeto, contrapartidas, métricas de utilidade, mecanismos de verificação e revisão.
5. Compare com frieza. Só assine se o pacote superar a sua BATNA e reduzir a sua WATNA de modo mensurável.
6. Mantenha coerência com outras frentes. A estratégia deve conversar com sua governança de crise, comunicação e defesa probatória — tema que tratamos em “Intimação para depor: o que fazer e como se defender”.
Acordo bom é acordo comparado
A pressão da investigação pode sugerir atalhos. Mas acordo bom é acordo comparado — com base em provas, riscos e alternativas reais. Quando a proposta melhora o seu cenário sem acordo e reduz danos concretos, negociar faz sentido. Quando não, a melhor decisão estratégica pode ser litigar.