Desde a Operação Lava Jato, a colaboração premiada tem sido um dos mais importantes temas de discussão do direito penal contemporâneo. Mas a alta relevância do instituto no Brasil contrasta com a reduzida redação original da Lei n.º 12.850/2013. Mesmo com a significativa reforma operada pela Lei n.º 13.964/2019, resultante em parte do Projeto Anticrime do ministro Sergio Moro, ainda há questões não suficientemente resolvidas.
Um dessas questões, que surge na mente de todos que podem vir a ser mencionados em um acordo de colaboração (por exemplo empresários e agentes públicos) é: se eu for delatado, e apontado por um determinado colaborador como autor de crimes, poderei alegar em juízo a ilegalidade/invalidade desse acordo, a fim de me proteger contra as acusações desse delator?
A resposta não é simples.
Em 2015, o STF fixou o entendimento de que o terceiro delatado não pode impugnar o acordo de colaboração premiada. Porém, é possível que esse entendimento venha a ser alterado – ou seja, que seja reconhecida a possibilidade de o terceiro delatado requerer a anulação do acordo. Como será descrito abaixo, já há dois votos de Ministros do STF pela possibilidade de reconhecimento da ilegalidade de acordo de colaboração, a partir de dois habeas corpus impetrados por delatados em uma operação paranaense. Confira-se abaixo a situação atual dessa discussão.
O precedente firmado pelo Supremo Tribunal Federal
Paralelamente ao silêncio da Lei n.º 12.850 a esse respeito, em 2015 o Supremo Tribunal Federal prolatou decisão, no Habeas Corpus n.º 127.483/PR, por meio da qual decidiu ser inadmissível qualquer questionamento do acordo de colaboração por terceiro, ainda que diretamente nominado no instrumento. O pedido foi feito pela defesa de um terceiro delatado por Alberto Youssef nas fases iniciais da Operação “Lava Jato”, com alegações de que o colaborador tinha personalidade voltada ao crime e não era confiável, bem como que suas declarações eram inverídicas.
No acórdão, o Supremo Tribunal Federal fixou pontos importantes acerca da colaboração premiada, que desde aquele momento passaram a guiar a aplicação do instituto no cenário pátrio. Entre eles: (i) a colaboração jurídica é um negócio jurídico processual personalíssimo e meio de obtenção de prova; (ii) a homologação da colaboração premiada não demanda juízo de valor quanto às declarações do colaborador; (iii) o acordo de colaboração, em si, não afeta a esfera jurídica de terceiros; e (iv) o acordo de colaboração premiada não pode ser impugnado por coautores ou partícipes do colaborador, ainda que tenham sido delatados.
O contexto no qual essa decisão foi proferida certamente influenciou o posicionamento da Corte sobre essas questões. Quando firmado o acordo com Alberto Youssef, a Operação “Lava Jato” ainda estava entre suas 6.ª e 7.ª fases, e quando realizado o julgamento do habeas corpus, entre a 19.ª e 20.ª fases. É possível, então, que a Corte tenha visado proteger e blindar o instituto da colaboração premiada, essencial à “Lava Jato” e aos vultosos resultados que ainda estavam começando a se desdobrar no cenário nacional. Por isso teria limitado de forma tão severa qualquer possibilidade de reconhecimento de ilegalidades na aplicação do instituto.
Até o momento, esse posicionamento é mantido nas decisões que abordam o assunto, todas resolvidas à mesma forma que no caso citado.
O dois Habeas Corpus que podem alterar o entendimento da Corte
Contudo, há dois outros habeas corpus pendentes de julgamento perante o Supremo Federal – HC n.º 142.205/PR e HC n.º 143.427/PR, ambos impetrados em 2017 –, que agora trazem novamente a questão àquela Corte, já com dois votos – pelos ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski – em sentido oposto ao entendimento anteriormente firmado.
O caso remete à Operação “Publicano”, originada na cidade de Londrina, com o objetivo primário de “desarticular organização criminosa formada por auditores fiscais da Receita Estadual, contadores e empresários que se uniram para facilitar a sonegação fiscal mediante o pagamento de propina”. Pouco após o oferecimento da primeira denúncia decorrente dessa operação, o Ministério Público do Estado do Paraná firmou acordo de colaboração premiada com um dos acusados, que havia sido preso (em março de 2015) em flagrante por crimes sexuais sem relação com o objeto da investigação. A partir dessa colaboração, várias outras fases da Operação foram deflagradas, com o oferecimento de diversas outras ações penais diretamente embasadas nas informações trazidas por esse colaborador.
Cerca de um ano depois, o Ministério Público apresentou pedido de rescisão do acordo de colaboração, em vista de alegado descumprimento das cláusulas avençadas, relatando que o colaborador teria mentido, omitido fatos e praticado novos delitos após a celebração. O Juízo Criminal acatou os argumentos e rescindiu o acordo. Prosseguidas as ações judiciais, o “ex” colaborador veio a ser interrogado em juízo em fevereiro de 2017, quando afirmou que os promotores de justiça haviam manipulado suas declarações e ocultado vídeos dos depoimentos prestados no bojo do acordo. Depois do ato, sua defesa ratificou as acusações, e requereu a decretação de busca e apreensão na sede do órgão ministerial, com o fim de localizar as gravações.
Reviravolta
Curiosamente, em março de 2017 o Ministério Público apresentou “Aditivo ao Termo de Colaboração”, por meio do qual o mesmo colaborador aceitou as condições de (i) se retratar quanto às acusações feitas contra os promotores de justiça, (ii) ratificar as declarações que havia prestado nas fases anteriores da Operação (as quais estavam no acordo rescindido) e (iii) apresentar fatos de corrupção praticados por empresas determinadas.
Após essa sequência inusitada de atos, vários dos réus/investigados que haviam sido delatados por esse colaborador manejaram habeas corpus ao Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, ao Superior Tribunal de Justiça e, finalmente, ao STF, visando o reconhecimento de diversas ilegalidades de natureza objetiva decorrentes desse “termo aditivo”.
Como se vê da breve descrição acima, os fatos retratados nesses dois habeas corpus ainda pendentes de julgamento diferem em muito daquele primeiro writ, no qual alegava-se principalmente que o colaborador e suas declarações não eram confiáveis. Agora, há questões objetivas que devem ser cuidadosamente analisadas pelo Supremo, mesmo que ao final se reconheça que não houve ilegalidade alguma. Mas é importante que essa análise seja feita, ainda que a provocação da Corte tenha partido de terceiros delatados.
A lei ainda não traz resposta expressa à questão
Paralelamente à pendência desses dois habeas corpus, tem-se ainda que a Lei n.º 12.850 foi consideravelmente alterada pela Lei n.º 13.964/2019, resultando do Projeto Anticrime, sendo que vários dispositivos referentes à colaboração premiada foram adicionados. Ao longo dos debates do Grupo de Trabalho que apresentou a redação aprovada pela Câmara e pelo Senado, dois objetivos declarados foram (i) fortalecer a segurança jurídica por meio de legislação expressa relacionada à colaboração premiada e (ii) impedir o uso abusivo do instituto por eventuais colaboradores desejosos de prejudicar seus inimigos políticos.
Embora ainda não haja previsão legal expressa quanto à possibilidade ou não de terceiros delatados impugnarem o acordo de colaboração premiada, conferir aos delatados essa oportunidade seria algo compatível com os dois objetivos acima indicados. Em suma, provavelmente ter-se-ia maior segurança jurídica e menores possibilidades de abuso ao submeter-se a colaboração premiada a um controle judicial mais intenso.
Críticas cabíveis ao entendimento do STF
Finalmente, isso ainda leva a discussão a um outro ponto: algumas das premissas sustentadas pelo STF na decisão de 2015, que considerou ser impossível a impugnação da colaboração por terceiros, são passíveis de sólidas críticas.
Primeiro, a noção de que a colaboração premiada poderia ser considerada como um negócio jurídico personalíssimo é altamente problemática. A própria Lei 12.850 estabelece que o instituto “pressupõe utilidade e interesse públicos”, bem como muitas das consequências jurídicas dela advindas possuem natureza de direito penal material – ou seja, matéria de ordem pública. Doutrinadores diversos já apontaram a natureza multifacetária do instituto[1] e o interesse eminentemente público envolvido[2].
Segundo, afirmar que a colaboração é apenas meio para obter provas, e não uma prova propriamente dita, não afasta o fato de que o acordo em si efetivamente enseja efeitos mais amplos do que a esfera dos celebrantes (colaborador e autoridades públicas). A formalização do acordo, destinada precipuamente a facilitar a persecução penal, acarreta a expansão do poder punitivo, o que inevitavelmente recai sobre os terceiros incriminados.[3] Há quem identifique uma efetiva mudança paradigmática quanto à principal arena da persecução penal, com o aumento vertiginoso da importância da investigação preliminar.[4]
Por fim, a noção restritiva quanto ao controle de legalidade exercido no momento da homologação também é questionável. Mesmo o Ministério Público, que é efetiva parte no acordo, não pode abandonar sua função constitucional de fiscal da lei, de modo que sua atuação na colaboração premiada deve ocorrer em esfera limitada de discricionariedade.[5] E mais: a mera participação de um particular, o que invoca a perspectiva negocial do instituto – que certamente não é a única envolvida –, não deve reduzir ou afastar o necessário controle de legalidade dos atos dos agentes públicos, mesmo após o momento da homologação do acordo.
O que todos esses questionamentos sinalizam, ante os dois feitos que em breve serão julgados pelo STF, é que talvez a Corte altere seu entendimento quanto à impossibilidade de impugnação da colaboração pelo delatado. Ou seja, é possível que venham a ser reconhecidas situações em que um delatado poderá questionar judicialmente a legalidade/validade de um acordo de colaboração que vier a lhe prejudicar. Embora não haja certeza que o STF decidirá dessa forma, os questionamentos colocados acima devem fazer, ao menos, que a Corte analise novamente a questão, sem as pressões existentes quando do julgamento realizado em 2015.
[1] V.g. BITTAR, Walter Barbosa. BORRI, Luiz Antonio. SOARES, Rafael Junior. A questão da natureza jurídica e a possibilidade de impugnação do acordo de colaboração premiada pelo delatado. Boletim IBCCRIM, n.º 322, set. 2019. Ainda: DIDIER JR., Fredie. BOMFIM, Daniela. Colaboração Premiada (Lei no 12.850/2013): Natureza Jurídica e Controle da Validade por Demanda Autônoma – um Diálogo com o Direito Processual Civil. Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro, n.º 62, out./dez. 2016, p. 36.
[2] REALE JR., Miguel. Colaboração premiada: natureza, dilemas éticos e consequências. In: BENETTI, Giovana; CORREA, André Rodrigues; FERNANDES, Marcia Santana; NITSCHKE, Guilherme Carneiro Monteiro; PARGENDLER, Mariana; VARELA, Laura Beck (org.), Direito, cultura, método: leituras da obra de Judith Martins-Costa. Rio de Janeiro: GZ, 2019. p. 74.
[3] VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Colaboração premiada no processo penal. 2. ed. rev., atual. E ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, p. 109. Em sentido semelhante: LEITE, Alaor. GRECO, Luís. O status processual do corréu delator. Portal JOTA, 30 set. 2019, disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/penal-em-foco/o-status-processual-do-correu-delator-30092019>.
[4] ROSA, Alexandre Morais da. Para entender a delação premiada a partir da teoria dos jogos: táticas e estratégias do negócio jurídico. Florianópolis: EModara, 2018, p. 142.
[5] MENDES, Gilmar Ferreira. Sistema de Justiça e Colaboração Premiada: o desafio da conciliação. Revista Jurídica da Presidência, Brasília v. 21 n. 124 Jun./Set. 2019 p. 245.
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