Reativamos hoje o blog do escritório com a missão de oferecer, semanalmente, reflexões objetivas sobre temas atuais afetos à área criminal empresarial. O texto inaugural nos é especialmente caro, por afetar o cotidiano de quem advoga — e, por consequência, de quem depende desse trabalho para empreender, investir ou simplesmente exercer seus direitos. Começo, portanto, com um alerta: o livre exercício da advocacia está em risco.
O precedente que acendeu a luz amarela
Na sessão de ontem, a 2.ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Paraná revogou, por maioria, ordem judicial que permitira a apreensão e a varredura integral do telefone celular de um advogado. Não havia, contra ele, imputação formal de ilícito algum; o mandatário atuava, dentro das prerrogativas profissionais, na defesa de uma empresa investigada por suposto favorecimento em licitação municipal. A autorização de “pescaria probatória” — extração de todos os dados do aparelho, sem delimitação de objeto — foi considerada nula.
A decisão é bem-vinda, mas escancara a tendência de confundir a figura do advogado com o de seu cliente. Se prosperasse, teríamos a exposição irrestrita de conversas protegidas por sigilo (art. 7.º, inciso II e § 2.º, do Estatuto da Advocacia) — inclusive aquelas que jamais interessem à investigação. Não se trata de privilégio corporativo, e sim de garantia institucional indispensável ao Estado de Direito: sem confidencialidade, não há defesa efetiva.
Criminalização por osmose
Casos como esse não são isolados. Em inquéritos que apuram crimes empresariais dos mais diversos, medidas invasivas contra advogados têm sido requeridas com base em meras conjecturas (“ele deve saber de algo”) ou em atos típicos da profissão (reuniões, troca de e-mails de orientação, acompanhamento de diligências). A cada episódio, normaliza-se a ideia de que a advocacia é instrumento ou disfarce de crime — uma perigosa inversão de presunção.
Não nego que advogados podem, eventualmente, participar de ilícitos. Mas é exatamente por isso que o ordenamento impõe filtro rigoroso: a inviolabilidade cede apenas quando há indícios concretos e individualizados de envolvimento doloso do profissional, jamais por suposição. Fora dessa hipótese, a devassa é abuso de poder.
Fundamentos constitucionais e legais
Dois dispositivos bastariam para barrar excessos:
- Art. 133 da Constituição: o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão.
- Art. 7.º da Lei 8.906/1994 (Estatuto): garante inviolabilidade do local de trabalho, de correspondências e de dados, salvo decisão motivada que descreva a infração, a participação do advogado e delimite o material procurado.
A jurisprudência dos tribunais superiores se alinha a essas balizas, exigindo decisão fundamentada e precisa. O problema, portanto, não é falta de norma, mas de observância — e, às vezes, de firmeza dos Tribunais em fazer valer o texto legal quando o caso ganha contornos midiáticos.
Impacto além da esfera penal
A advocacia criminal costuma ser chamada a atuar somente depois de o fato ter ocorrido; raríssimas vezes o advogado presencia ou participa do momento em que o crime se consuma. Já na advocacia empresarial, tributária ou administrativa, o profissional trabalha concomitantemente a atos que podem, no futuro, ser questionadas criminalmente (contratos públicos, planejamento fiscal, licenciamentos ambientais). É aí que o risco cresce.
Por isso, escritórios de todas as áreas devem redobrar cuidados:
- Segregar canais de comunicação: uso de plataformas com criptografia de ponta a ponta e armazenamento em servidores próprios.
- Documentar finalidades legítimas: atas de reunião, relatórios de consultoria e pareceres deixam claro o âmbito estritamente jurídico da atuação.
- Revisar políticas internas de compliance: a cultura de prevenção deve incluir protocolos para intimações, buscas e requisições de dados.
- Acionar a OAB de imediato diante de constrangimento ilegal: a Ordem possui prerrogativa de acompanhar diligências e, se necessário, impugná-las judicialmente.
Essas medidas não blindam condutas ilícitas — quem delinque vestindo beca responderá como qualquer cidadão —, mas preservam o exercício correto da profissão de ataques indevidos.
Uma pauta que exige vigilância coletiva
Advocacia livre não é interesse apenas dos advogados; é garantia de toda a sociedade. Empresários, gestores públicos e cidadãos comuns precisam confiar que o diálogo com seu defensor permanecerá protegido. Quando essa confiança se rompe, o incentivo ao aconselhamento prévio — que evita litígios e corrige rotas antes que o dano ocorra — também se perde.
A crítica às violações deve ser firme, porém técnica. Não se trata de imunidade absoluta, mas de respeito a um pilar constitucional. A recente vitória no TJ/PR lembra que o sistema ainda produz anticorpos, mas eles precisam ser estimulados pelo nosso controle permanente.
Para continuar a reflexão
Organizei conjuntamente com o Professor Diogo Malan (UFRJ/UERJ) o livro Advocacia Criminal no Cinema, que analisa como o audiovisual retrata – e por vezes distorce – o papel do defensor. No capítulo que escrevi, mostro como certas narrativas reforçam o estereótipo do “advogado cúmplice”. O debate complementa o tema deste artigo. O exemplar está disponível no site da Editora Lumen Juris: https://lumenjuris.com.br/direito-processual-penal/advocacia-criminal-no-cinema-2024-4373/p.
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Nos próximos textos, trataremos de diversos temas permeiam a interseção entre Direito Penal e operações empresariais. Sugestões de pauta são bem-vindas. Até lá, sigamos atentos: a defesa de hoje molda a liberdade de todos amanhã.
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