Crimes Licitatórios em Pregão Eletrônico: quem é competente para julgar?

A ampliação do uso do pregão eletrônico transformou profundamente a forma como empresas se relacionam com a Administração Pública. O procedimento, hoje praticamente dominante nas contratações governamentais, trouxe ganhos evidentes de eficiência, competitividade e alcance nacional. Ao mesmo tempo, porém, introduziu uma nova camada de complexidade jurídica, especialmente no campo penal.

Uma das dúvidas que mais frequentemente surgem nesse contexto é simples apenas em aparência: onde se julga um crime supostamente praticado em um pregão eletrônico? Em outras palavras, quando os atos relevantes ocorrem por meio digital, ainda faz sentido falar em território para fins de competência penal?

A resposta dos tribunais superiores é relativamente clara. O problema é que, na prática forense, ela nem sempre é observada desde o início do processo.

Do procedimento administrativo ao risco penal

Grande parte das discussões penais relacionadas a licitações não nasce, necessariamente, de acusações clássicas de fraude ao certame. Muitas imputações se estruturam em torno de condutas conexas, como a suposta apresentação de documentos falsos, declarações inexatas ou informações técnicas contestadas por concorrentes.

No ambiente do pregão eletrônico, esses atos costumam ocorrer de forma inteiramente digital. Propostas são inseridas em sistemas oficiais, documentos são anexados online e declarações são preenchidas e enviadas a partir da sede da empresa ou de outros locais. Ainda assim, não é incomum que investigações e ações penais tenham início no local do órgão público contratante, sob a suposição de que ali estaria concentrado o núcleo do procedimento.

Essa suposição, contudo, não encontra respaldo na jurisprudência consolidada.

A regra da competência penal diante do meio digital

O Código de Processo Penal adota, como regra, o critério do local de consumação da infração para a definição da competência. Em delitos praticados por meios tradicionais, a identificação desse local costuma ser relativamente simples. No ambiente digital, porém, a noção de “entrega” ou “apresentação” do documento precisa ser reinterpretada.

No pregão eletrônico, não há entrega física nem comparecimento presencial. O ato relevante ocorre no momento em que o documento é efetivamente preenchido e enviado ao sistema eletrônico oficial. É nesse instante que se realiza o último ato de execução da conduta que fundamenta a imputação penal.

A pergunta central, portanto, não é onde está sediado o órgão público, mas onde se praticou o ato digital que estrutura a acusação.

O entendimento do STJ e sua consolidação

O Superior Tribunal de Justiça enfrentou essa questão de forma direta ainda em 2015, no julgamento do Conflito de Competência nº 125.014/DF, analisado pela Terceira Seção. Naquele precedente, discutia-se a suposta apresentação de declarações falsas em procedimento licitatório realizado na modalidade pregão eletrônico. Ao resolver o conflito, o Tribunal assentou que, em procedimentos licitatórios virtuais, a consumação do delito ocorre no local do preenchimento e envio eletrônico do documento, pois é ali que se realizam os últimos atos de execução relevantes para fins penais.

A Corte afastou, assim, a ideia de que a competência territorial devesse ser automaticamente fixada na sede do órgão público responsável pelo certame ou no local formal da licitação, destacando que o meio eletrônico exige uma leitura funcional da regra prevista no art. 70 do Código de Processo Penal.

Esse entendimento não permaneceu isolado. Em decisões mais recentes, o STJ voltou a reafirmar expressamente essa orientação. No Conflito de Competência nº 204.647/MG, decidido em 2024, a Corte novamente reconheceu que, quando a imputação penal decorre da apresentação de documentos falsos em pregão eletrônico, a consumação se dá no local de onde partiu o envio eletrônico.

Na mesma linha, o Conflito de Competência nº 206.302/SP, também julgado em 2024, reiterou que, em hipóteses de fraude ou uso de documento falso em procedimento licitatório virtual, a competência deve ser fixada no local em que ocorreu o preenchimento e a transmissão do documento eletrônico.

O que se extrai dessa linha decisória é uma orientação clara e estável: a virtualização do procedimento licitatório não elimina a territorialidade da jurisdição penal, mas desloca o seu ponto de referência para o local onde o ato digital é efetivamente praticado.

Quando a jurisprudência não é observada desde o início

Apesar dessa orientação relativamente consolidada, não é raro que procedimentos investigatórios e ações penais tenham início perante juízos territorialmente incompetentes. Atribuir competência ao local do órgão público ou ao local formal do certame ainda é uma prática que persiste, mesmo em hipóteses claramente estruturadas em atos digitais.

Para o acusado, esse equívoco pode gerar prejuízos relevantes. A tramitação do processo em foro inadequado impacta custos, logística, estratégia defensiva e, sobretudo, a regularidade dos atos processuais praticados. A questão da competência, portanto, não é um detalhe técnico secundário, mas um ponto que deve ser analisado com atenção desde os primeiros atos da persecução penal.

O momento adequado para discutir a competência e seus efeitos

O sistema processual penal estabelece momentos próprios para a arguição da incompetência territorial. Em regra, trata-se de matéria que deve ser suscitada oportunamente, sob pena de prorrogação da competência do juízo inicialmente acionado.

Isso significa que a inércia pode consolidar a atuação de um juízo que, à luz da jurisprudência, não seria o competente para processar o feito. Por outro lado, quando a incompetência é arguida no momento adequado, abre-se espaço para a correção do curso processual, com reflexos diretos sobre a validade dos atos praticados.

A depender das circunstâncias, o reconhecimento da incompetência pode exigir a ratificação de atos decisórios ou, em situações específicas, levar à sua invalidação, especialmente quando demonstrado prejuízo. Em qualquer hipótese, trata-se de discussão com impacto concreto sobre o andamento e a conformação do processo.

Por que essa discussão importa para empresas

Para empresas que contratam com o Poder Público, compreender essa dinâmica é essencial. A digitalização das licitações ampliou o alcance territorial das relações administrativas, mas não eliminou os limites jurídicos da jurisdição penal.

Saber onde um eventual conflito será julgado, quando e como questionar a competência do juízo e quais são os efeitos dessa discussão sobre a validade dos atos processuais é parte integrante de uma gestão responsável de riscos. Em um cenário de disputas cada vez mais técnicas e judicializadas, a atenção a esses aspectos pode evitar prejuízos que vão muito além do mérito da acusação.

Considerações finais

O pregão eletrônico consolidou-se como instrumento central das contratações públicas, mas trouxe consigo novos desafios para o direito penal e processual penal. A jurisprudência do STJ tem oferecido respostas consistentes quanto à definição da competência territorial em ambientes digitais. O desafio atual não está na falta de orientação, mas na sua correta aplicação desde o início dos procedimentos.

Para empresas, a lição é direta: em matéria penal, o território continua existindo. Apenas mudou o ponto a partir do qual ele deve ser observado.

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