Felca e a adultização: omissão imprópria dos pais?

Nos últimos dias, o vídeo intitulado “Adultização” publicado pelo youtuber Felca repercutiu muito além de sua base de seguidores. Se ainda não assistiu, veja aqui.

Mais do que entretenimento, Felca apresentou um retrato perturbador da adultização e exposição de crianças na internet, indo de situações aparentemente inofensivas e caricatas  até casos explícitos de exploração sexual infantil.

O mérito do vídeo está em expor um problema que estava debaixo de nossos narizes e organizá-lo em forma de funil — ou, nas palavras do próprio criador, um mergulho pelo buraco do coelho — que começa com o que muitos tratariam como “normal” e desce a camadas cada vez mais degradantes, como nos círculos do Inferno de Dante, onde cada nível revela algo mais sufocante e nefasto que o anterior.

O aspecto central é que, já nas primeiras camadas, muito antes das condutas mais repugnantes, observa-se a omissão de pais e responsáveis no dever de cuidado e vigilância. Como prevê o art. 13, §2º, “a”, do Código Penal, a omissão é penalmente relevante quando aquele que podia agir — e tinha o dever de agir — deixa de fazê-lo.

As camadas do Inferno apresentado por Felca.

O vídeo se estrutura em atos que representam diferentes profundidades do problema.

Na primeira camada, está a adultização “normalizada”, com crianças reproduzindo discursos e posturas de empresários e influenciadores, transmitindo imagem de produtividade e sucesso enquanto ainda em formação. Tal comportamento é frequentemente incentivado e explorado por pais em busca de monetização e visibilidade.

A segunda camada aborda a exposição midiática abusiva, exemplificada por canais infantis gerenciados por familiares que, visando engajamento, submetem a criança a situações vexatórias e à pressão de audiências e críticas. O problema surge já na decisão de expor a criança, inclusive quando ela demonstra desconforto.

Na terceira camada, a adultização aparece com conotação sexual. Nela, em verdade, a sexualização se aproxima do explícito, com realities e conteúdo que inserem adolescentes em contextos adultos, com a presença de álcool, insinuações sexuais e procedimentos estéticos, atraindo públicos que incluem abusadores. A exposição continuada funciona como condicionamento comportamental, moldando condutas para atender expectativas externas.

Na quarta e mais grave camada, o vídeo revela a exploração sexual infantil explícita, com casos em que pais produzem e comercializam material pornográfico envolvendo seus próprios filhos, lucrando com a distribuição em redes privadas e grupos criminosos.

Por fora dessas camadas, mas interligando todas elas, está o que Felca denomina “Algoritmo P”: um sistema que, em vez de eliminar, impulsiona vídeos com crianças adultizadas ou sexualizadas, amplificando riscos e perpetuando abusos.

A “nona camada”, não abordada por Felca.

O relevante trabalho de Felca percorreu todas as camadas acima descritas, expondo com clareza a profundidade e a gravidade do problema. Ainda assim, há uma camada adicional — talvez a mais sombria e extrema desse “inferno digital” — que não foi abordada por ele. Trata-se de contextos em que múltiplas formas de violência contra crianças e adolescentes se combinam com ausência quase absoluta de supervisão e falhas graves na moderação de conteúdo.

Exemplo paradigmático é a Operação “Dark Room” (2023), que revelou um desses ambientes. No caso, um servidor na plataforma Discord era administrado por um jovem de 19 anos, identificado como “King”, que centralizava práticas criminosas como “estupro virtual” (art. 213, CP), armazenamento e comercialização de material pornográfico infantil (arts. 241-A e 241-B, ECA), além de outros delitos correlatos. A dinâmica incluía a obtenção de material íntimo de adolescentes e o uso de ameaças para constrangê-las à prática de atos libidinosos, transmitidos em tempo real para outros membros do grupo.

O episódio demonstra que a prevenção não pode se limitar ao controle de conteúdos aparentemente inofensivos. Plataformas de comunicação e redes sociais, quando não monitoradas, podem se tornar centros de convergência para crimes graves. A ausência de intervenção precoce — seja por parte dos responsáveis, seja pelas próprias empresas — favorece a consolidação de redes estruturadas de exploração, nas quais a vitimização é reiterada e amplificada pela exposição coletiva.

A relevância da omissão dos pais.

Não é necessário chegar às camadas mais extremas — onde o absurdo é evidente e a punição, indiscutível — para identificar omissões parentais juridicamente relevantes. Nas primeiras camadas, ainda sem violência física ou sexual explícita, já se verificam riscos concretos e violações de direitos, como no simples acesso ilimitado e não supervisionado às redes sociais.

Nas situações incialmente descritas, crianças engajadas no ambiente digital, sem mediação ou filtros, ficam expostas a dinâmicas e pressões próprias do mundo adulto. O dever de cuidado permanece, independentemente de o conteúdo parecer inofensivo. Aqui podem se inserir até mesmo situações onde os pais permitam o acesso ilimitado e não supervisionado às redes sociais. E não é porque o conteúdo — ou o consumo de conteúdo — não é explícito, que o dever de cuidado deixa de existir.

Assim como na Divina Comédia, não é necessário chegar ao núcleo para que se esteja, de fato, no inferno. Na adultização exposta pelo vídeo não é preciso atingir as camadas mais profundas para reconhecer a gravidade da conduta omissiva dos responsáveis.

O Código Penal — especificamente na alínea “a” do §2.º do art. 13º — estabelece que a omissão é penalmente relevante quando o omitente “tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância”. É aqui que está inserida a responsabilidade dos pais.

 E no contexto dessas camadas iniciais, a tendência é de que a simples permissão para que a criança se exponha em ambientes digitais sem qualquer mediação ou filtro por parte do responsável venha a ser compreendida como a omissão prevista no dispositivo supracitado.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, nos arts. 5º e 17, reforça o dever de proteção integral ao proibir qualquer forma de negligência, exploração ou violação dos direitos fundamentais, assegurando a preservação da integridade física, psíquica, moral e da imagem de crianças e adolescentes.

Justamente por isso a necessidade de controle e supervisão parental no ambiente virtual, que permeia as primeiras camadas do “inferno” descrito por Felca, já vinha sendo discutida no plano legislativo antes mesmo da repercussão de seu vídeo.

Exemplo disso é o Projeto de Lei n.º 1052/24, que propõe criminalizar o chamado “abandono digital” — conduta de pais ou responsáveis que deixam de educar ou prestar assistência no uso da internet, colocando em risco a segurança dos filhos.

A proposta criminaliza a conduta e se fundamenta no princípio da proteção integral e no dever legal inerente ao poder familiar, reconhecendo que a vulnerabilidade das crianças se estende ao espaço digital e que a negligência nesse campo pode ensejar intervenção penal.

Embora anterior ao vídeo de Felca, o debate provocado por ele reforça a pertinência de iniciativas como essa, que buscam responsabilizar de forma mais incisiva condutas omissivas no ambiente virtual. Ao evidenciar que a omissão relevante pode ocorrer muito antes da ocorrência de crimes explícitos, o vídeo contribui para que projetos dessa natureza encontrem maior receptividade social e política.

Sob essa ótica, as camadas superficiais do “inferno” da adultização, ainda distantes dos casos de exploração sexual explícita, não podem ser desconsideradas como juridicamente irrelevantes. Ao contrário, é nelas que a atuação preventiva dos responsáveis é mais eficaz e necessária para impedir a progressão do risco e a escalada para níveis mais graves de violação.

Sharenting e a fronteira entre a exposição socialmente aceita e a violação de direitos

O termo sharenting, derivado da junção de share (compartilhar) e parenting (paternidade/maternidade), descreve a prática de pais ou responsáveis que publicam imagens, vídeos e informações sobre a vida dos filhos nas redes sociais. Embora muitas vezes motivada por afeto ou registro familiar, essa conduta levanta questões relevantes sobre privacidade, consentimento e proteção integral.

No contexto das camadas iniciais descritas por Felca, o sharenting se torna problemático quando ultrapassa o limite da exposição socialmente aceita e adentra zonas de risco. Registros aparentemente inocentes, quando tornados públicos e sem controle de acesso, podem ser apropriados por terceiros para fins ilícitos ou inseridos em dinâmicas que sexualizam ou ridicularizam a criança.

O risco se acentua quando a prática deixa de ser pontual e passa a compor uma rotina, transformando a criança em personagem de um produto midiático. A visibilidade online, governada por algoritmos, não diferencia interações benignas de abusivas, o que potencializa a chegada do conteúdo a públicos de risco.

Em casos extremos, essa exposição pode configurar a omissão penalmente relevante prevista no art. 13, §2º, “a”, do Código Penal, quando há ausência de filtragem ou controle de acesso. Por isso, o sharenting exige reflexão constante sobre os limites éticos e jurídicos dessa exposição: a fronteira entre registro legítimo e violação de direitos varia conforme o contexto, o grau de visibilidade e a vulnerabilidade associada ao conteúdo. Antes mesmo do vídeo que transpassou todas as bolhas digitais, já havia decisões judiciais determinando que pais cessassem a superexposição de seus filhos, demonstrando que a prevenção começa nas camadas superficiais e depende de atuação consciente e contínua dos responsáveis.

Conclusão

Como bem pontuou Felca, o ideal é que crianças estejam ocupadas com brincadeiras, vivências presenciais e experiências condizentes com sua faixa etária — longe da lógica de exposição e consumo frenético das redes sociais. Essa, contudo, é uma decisão que se insere no âmbito mais íntimo do poder familiar, ligado diretamente à forma como cada pai ou mãe opta por educar e criar seus filhos.

O que não se pode ignorar é que, uma vez escolhida a via do acesso ao ambiente digital, esse acesso precisa ser limitado, supervisionado e constantemente mediado. Isso implica conhecer as plataformas, monitorar interações, restringir funcionalidades e manter diálogo aberto com a criança ou adolescente sobre riscos e responsabilidades no uso da internet.

O holofote colocado sobre a situação — seja pelo impacto social do vídeo de Felca, seja por casos concretos, como o da Operação “Dark Room” — tende, justificadamente, a endurecer o tratamento jurídico dispensado àqueles que se omitem diante do seu dever legal de cuidado, proteção e vigilância.

A omissão parental no ambiente virtual, antes tratada muitas vezes como mera falha educativa, pode passar a ser vista como conduta apta a gerar responsabilização penal, especialmente quando o risco é concreto e previsível.

Seja pela prudência moral, seja pela responsabilidade legal, o recado é inequívoco: a internet não é um espaço neutro ou seguro por natureza, e o dever de proteção começa antes mesmo do primeiro clique.

Ignorar isso não apenas expõe crianças e adolescentes, mas também priva famílias da oportunidade de construir relações digitais mais seguras e conscientes. A proteção começa antes do primeiro clique — e, com diálogo, limites claros e presença ativa, é possível transformar o ambiente virtual em espaço de aprendizado e desenvolvimento saudável.

Nosso escritório mantém-se à disposição para orientar e auxiliar pais, responsáveis e educadores na adoção de medidas preventivas e na defesa dos direitos de crianças e adolescentes no ambiente digital.

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