A Prevenção à Covid-19 e a Responsabilidade de Gestores Públicos

O momento de pandemia da Covid-19 tem criado inúmeras dificuldades. Muitos estabelecimentos se encontram fechados. Desde o fim de março, nós mesmos na Lucchesi Advocacia estamos em regime de home office. O intuito é, acima de tudo, “achatar a curva”, a fim de preservar a saúde e bem-estar de todos. No âmbito público, vemos agentes enfrentando algumas dificuldades, em especial, como conduzir a nossa sociedade nesse momento sem precedentes? Muitas dúvidas surgem, tanto por nossos clientes na iniciativa privada quanto na rede pública. Por sigilo profissional, não podemos revelar detalhes, mas fomos autorizados a relatar uma situação concreta que chegou à nossa análise:

(Parte 1)

Fomos consultados a respeito da possível responsabilidade criminal de agentes públicos municipais da área da saúde, após questionamento pelo Ministério Público quanto a normativas editadas pela Secretária de Saúde, nos seguintes termos:

“Os integrantes do [Comitê], ao editarem Resolução posicionando-se favoravelmente à retomada das atividades não essenciais, basearam-se em quais evidências científicas tal posicionamento? Os Srs. Membros do referido Comitê, caso comprovada relação ou nexo entre a postura tomada e o adoecimento e/ou mortes de pessoas pela Covid-19, têm ciência de que poderão ser responsabilizados por essas consequências? Favor explicar detalhadamente.”

Contexto Fático

É preciso esclarecer que não houve nos atos municipais qualquer determinação de relaxamento do distanciamento social e de outras medidas de prevenção à Covid-19. O Município em questão havia editado Decreto estabelecendo medidas complementares para enfrentamento da emergência em saúde pública, decorrente da Covid-19. Em tal normativa, o Município determinou, entre outras medidas, que a iniciativa privada considere a suspensão de eventos e de atividades não essenciais.

O Decreto foi regulamentado por Resolução da Secretaria de Saúde, que incrementou as regras de segurança, ao determinar aos estabelecimentos públicos e privados que se encontrem abertos o uso obrigatório de máscaras, o controle de lotação de pessoas e adoção de medidas de higiene, sob pena de multa e cassação de alvará.

Apesar destas determinações, o Ministério Público apontou haver posição favorável à retomada de atividades não essenciais pelo Município, indicando a eventual responsabilização criminal dos gestores caso alguém venha a adoecer por conta das recomendações.

Pressupostos Jurídicos para a Responsabilidade Penal

Para que se possa analisar propriamente a atuação dos gestores municipais, em caso de “adoecimento e/ou mortes de pessoas pela Covid-19” como produto da “postura tomada”, é necessário apontar quais podem ser os possíveis crimes cometidos.

a) Perigo de Contágio de Contágio de Moléstia Grave (art. 131 CP)

O delito de perigo de contágio de moléstia grave (art. 131 CP) ocorre quando o autor “praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz de produzir o contágio”. 

Este crime exige que o autor esteja efetivamente contaminado, saiba estar contaminado e aja com a finalidade de transmitir a moléstia grave. Deste modo, não se vislumbra relevância desse crime para a situação sob análise.

b) Epidemia (art. 267 CP)

O crime de epidemia (art. 267, CP) ocorre quando um determinado agente “causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos”. Causar se refere ao primeiro ato de disseminação da epidemia, isto é, ao seu surgimento. Desse modo, eventuais atos subsequentes praticados por outros indivíduos, ainda que propaguem ou agravem, não podem ser considerados como ato de causar. Além disso, é necessário que os germes patogênicos sejam propagados pelo autor. Com isso, a mera criação de risco de propagação, não configura o crime em questão.

c) Infração de Medida Sanitária Preventiva (art. 268 CP)

O crime de infração de medida sanitária preventiva (art. 268, CP) ocorre quando o agente “infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”. A conduta criminosa vedada é, em resumo, meramente desrespeitar/desobedecer determinação do poder público — que se destine a impedir a propagação de doença contagiosa. 

Deve haver, primeiro, alguma determinação por parte do poder público (o que não se confunde com uma recomendaçãoou orientação), com algum comando objetivo específico. Em segundo lugar, deve a determinação advir do poder público, o que entendemos significar uma lei federal que se destine a evitar a propagação de doença contagiosa.[1]

d) Perigo para a Vida ou Saúde de Outrem (art. 132 CP)

Comete o delito de perigo para a vida ou saúde de outrem (art. 132, CP) quem pratica a ação de “expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente”. O crime é cometido quando alguma vítima determinada é exposta a perigo direto e iminente. Algum perigo abstrato não é suficiente para que haja crime. Além disso, deve haver intenção do agente de expor a vítima a perigo. 

Entendemos que o contágio pela Covid-19 configura um perigo direto e iminente. A questão é que o crime exige que seu autor tenha a intenção de criar perigo. Não haverá crime se o perigo for criado por descuido ou imprudência.

e) Lesão Corporal (art. 129 CP)

Embora agora não se trate de delito especificamente relacionado à saúde pública e à transmissão de moléstias, tais quais os analisados anteriormente, necessário trazer à discussão o delito de lesão corporal (art. 129, CP).

Diferentemente dos crimes de perigo abstrato e concreto, por meio dos quais se incrimina a criação de um risco não tolerado, socialmente inadequado e indesejado, por meio da lesão corporal pune-se o efetivo resultado danoso à integridade física ou à saúde de outrem.

Incidirá no delito de lesão corporal aquele que praticar ação que comprovadamente resulte na contaminação de outrem pela Covid-19, desde que essa conduta seja dolosa — ou seja, haja ação voluntária na qual a contaminação se afigure como certa — ou culposa — caso a contaminação decorra de ato de imprudência, negligência, imperícia.

A grande questão diz respeito ao nexo de causalidade. Para que haja responsabilidade por crime de lesão corporal, será necessário que a atuação de quem se pretenda responsabilizar seja imprescindível para a ocorrência do contágio. A incerteza quanto a efetiva causação do resultado não pode ensejar a responsabilização criminal.

f) Homicídio (art. 121 CP)

Por fim, no tocante ao delito de homicídio (art. 121 CP), parece-nos inviável, com os dados divulgados até o momento, que se cogite a punição de morte decorrente da Covid-19. Isso porque o risco de efetiva morte é consideravelmente inferior ao risco de contágio — esse, sim, considerável —, o que elimina a visualização de nexo de causalidade entre a ação que enseje o contágio e eventual morte futura

Explicamos: no tocante à lesão corporal, em tese pode-se cogitar a punição do agente que dê causa à contaminação — e consequente ofensa à saúde de outrem —, porque o comprovadamente elevado risco de contágio permite que se conecte a ação ao resultado, visualizando-se o nexo de causalidade direto. Diferentemente, a morte é resultado que ocorre — felizmente — em consideravelmente menor proporção, tratando-se de vírus cuja taxa de mortalidade é tida como relativamente baixa

Desse modo, mesmo que estivéssemos diante de ação voluntária que ensejou a contaminação de forma dolosa, a baixa probabilidade do resultado morte eliminaria o nexo de causalidade entre a ação e o resultado, o que afastaria a possibilidade de imputação do crime de homicídio.

Acaso efetivamente viesse a ser demonstrada a ocorrência de morte seguida a eventual contaminação causada por ação humana, estaríamos diante, no máximo, de um outro crime: lesão corporal seguida de morte

Conclusões Parciais

Percebemos que há alguns tipos penais que costumam ser relacionados a epidemias e pandemias como a Covid-19 e que são irrelevantes para a nossa discussão. Os gestores públicos municipais (e os proprietários de estabelecimentos que seguirem as suas orientações) não podem de modo algum serem responsabilizados por crimes de perigo de contágio de moléstia grave (art. 131 CP), epidemia (art. 267 CP) ou homicídio (art. 121 CP).

Cabe, porém, alguma discussão se há elementos para responsabilidade destes agentes se, por resultado de suas condutas, houver contaminação de pessoas pela Covid-19 ou até mesmo suas mortes, como adverte o Ministério Público. Nossa análise se restringirá apenas às repercussões jurídico-criminais.

No próximo artigo, analisaremos as recomendações do Município e se é possível falar em crime pelos gestores municipais e pelos particulares que seguirem as orientações do Município. Também analisaremos a atuação do Ministério Público em tempos de pandemia.

continua…

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E você? O que pensa sobre a atuação das autoridades para contenção da Covid-19?
Responda nos comentários abaixo.

Guilherme Brenner Lucchesi
guilherme@lucchesi.adv.br


[1] Nesse sentido: MONTENEGRO, Lucas. VIANA, Eduardo. Coronavírus: um diagnóstico jurídico-penal, JOTA. 23 mar. 2020 (https://bit.ly/3bT8N0j); LEITE, Alaor. GRECO, Luís. Direito Penal, saúde pública e epidemia, JOTA. 15 abr. 2020 (https://bit.ly/2Yj51JL).

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