A polícia pediu a senha do seu celular? Saiba até onde vai o dever de colaborar.

Nos últimos dias, o debate sobre os limites da atuação policial durante o cumprimento de mandados de prisão e de busca e apreensão voltou ao centro das atenções. A questão reaparece a partir do episódio envolvendo a prisão do influenciador digital Buzeira, que também deu origem ao nosso artigo “Bets, influenciadores e lavagem de dinheiro”.

O caso voltou à pauta depois que matéria publicada pelo Metrópoles repercutiu imagens captadas pelas câmeras de segurança da residência, nas quais se vê a ação dos policiais e, em especial, um momento em que aparentemente um dos agentes empurra o influenciador e o constrange a fornecer a senha de seu aparelho celular — situação que rapidamente se tornou tema de discussão pública sobre os direitos do investigado. Segundo a reportagem, “questionado diretamente pela juíza, o investigado afirmou que a prisão ocorreu de forma legal, descrevendo a abordagem como normal e respondendo com tranquilidade às perguntas”.

Mas a questão extrapola o caso pontual. O assunto dialoga com outro tema que já exploramos aqui no blog, no artigo “Acordou às 6h com a polícia na porta? Saiba o que fazer em uma busca e apreensão”, em que destacamos que, diante de operações dessa natureza, a calma e a técnica jurídica são as primeiras formas de defesa. Agora, o foco recai sobre uma dúvida específica: até onde vai o dever de colaborar com a autoridade — e onde começa o direito de se resguardar?

A entrega do aparelho não é opcional

Quando há mandado judicial de busca e apreensão, ele deve ser cumprido.
A recusa em entregar o celular, notebook ou outros dispositivos pode configurar crime de desobediência.

Ordem judicial não se discute em “bate-boca” — cumpre-se ou se impugna pelos meios recursais adequados.

Em situações assim, a postura mais prudente é cumprir a ordem judicial com respeito e exigir que o procedimento seja documentado, preservando o direito de questionar eventuais abusos posteriormente.

O direito à intimidade e seus limites.

A Constituição Federal, no art. 5º, inciso X, assegura a inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, garantindo indenização pelo dano decorrente de sua violação. Esse é um pilar do Estado Democrático de Direito. Parte do princípio de que o cidadão tem o poder de manter sob reserva parte de sua vida, suas comunicações e informações pessoais.

Nem tudo é de interesse público, muito menos do Estado. Entretanto, o próprio texto constitucional admite relativizações legítimas, desde que autorizadas por ordem judicial fundamentada.

É o que ocorre quando a Justiça determina a busca e apreensão de eletrônicos ou a quebra de sigilo telefônico e telemático — hipóteses em que o direito à privacidade é afastado em prol de um interesse maior, em especial para a apuração de um fato criminoso.

    O direito à não autoincriminação.

    Por outro lado, o que não pode ser relativizado é o direito à não autoincriminação — consagrado no art. 5º, inciso LXIII, segundo o qual “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado.”

    Esse direito protege o indivíduo contra a coerção estatal, impedindo que ele seja forçado a contribuir com investigação contra si. Assim, mesmo quando existe uma decisão judicial determinando o acesso a dados, o investigado não é obrigado a fornecer a senha do aparelho ou a facilitar o acesso à prova.

    Ele deve entregar o aparelho caso decisão judicial assim determine. Mas não tem o dever colaborar ativamente com a produção de provas em seu desfavor.

    O que decidiu o Supremo Tribunal Federal?

    No RHC 260.003/SC, o STF analisou situação similar e concluiu o seguinte:

    3. A autorização judicial para acesso aos dados do aparelho celular torna desnecessário o consentimento do investigado para desbloqueio, de modo que a alegada coação não invalida a diligência.
    4. A mera alegação de constrangimento, desacompanhada de elementos probatórios idôneos, não autoriza a anulação de ato processual nem justifica revisão da decisão das instâncias ordinárias, sendo vedado em habeas corpus o reexame de fatos e provas.”
    (STF, 2.ª T., RHC n.º 260.003 AgR/SC, Relator Ministro André Mendonça, j. 22 set. 2025)

    A decisão apenas tangencia a questão. Afirma que era desnecessária a obtenção da senha pela autoridade policial eis que havia autorização judicial para acesso aos dados do aparelho.

    De fato, o fornecimento da senha não é necessário, mas facilita o trabalho policial.
    Ao mesmo tempo em que a decisão sai pela tangente, em momento algum afirma que é dever do investigado fornecer a senha.

    E vamos além: apesar de, no caso, ter-se concluído que “a mera alegação de constrangimento, desacompanhada de elementos probatórios idôneos, não autoriza a anulação de ato processual”, nos parece que o contrário autorizaria a anulação.

    Ou seja, acaso comprovado o constrangimento para o fornecimento de senhas, isso torna nulo — ou ao menos deveria ter esse efeito, na humilde opinião do autor deste artigo — o ato processual.

    Conclusão

    Em um Estado de Direito, a legalidade não é uma via de mão única.

    Se por um lado o cidadão deve cumprir ordens judiciais e colaborar dentro dos limites da lei, por outro o Estado deve respeitar as fronteiras traçadas pela Constituição.

    A intimidade (art. 5º, X da CF) pode ser relativizada quando há mandado judicial, mas o direito de não se autoincriminar (art. 5º, LXIII da CF) permanece intocado. A decisão de busca e apreensão de um aparelho celular, por exemplo, deve ser respeitada e o seu cumprimento não pode ser obstado. Mas isso não significa que, além de entregar o aparelho, o investigado deva também fornecer as senhas para acesso ao seu conteúdo.

    O investigado tem a faculdade de fornecer a senha, e essa decisão deve ser tomada com serenidade e após consulta a um advogado.

    Como ressaltamos no artigo “Acordou às 6h com a polícia na porta? Saiba o que fazer em uma busca e apreensão”, o smartphone guarda a vida de qualquer pessoa e, no processo penal, converte-se em verdadeiro cofre de provas.
    A legislação garante o direito ao silêncio digital: ninguém é obrigado a fornecer senhas.
    Recusar a senha não configura obstrução, mas obriga o Estado a adotar vias legais de extração de dados, sob supervisão judicial. Esse intervalo é precioso para a defesa impugnar excessos e delimitar o que pode realmente ser usado como prova.

    Importa lembrar que constranger o investigado a produzir prova contra si mesmo ou contra terceiro configura crime de abuso de autoridade, nos termos do art. 13, III, da Lei nº 13.869/2019.

    Acaso se encontre em cenário similar, naturalmente tenso, nenhuma reação deve ocorrer em desrespeito ou desafio à autoridade policial, mas qualquer abuso deve ser relatado imediatamente ao advogado e, posteriormente, em audiência de custódia.

    Mais uma vez: no direito penal, serenidade não é fraqueza — é arma de defesa.

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