Regime de bens e processo penal: quando o patrimônio do cônjuge entra em risco

A pergunta prática é direta: em quais situações o patrimônio do cônjuge/companheiro pode ser bloqueado no processo penal? A resposta depende do regime de bens (comunhão parcial, comunhão universal, separação convencional/obrigatória, participação final nos aquestos) e de como a lei estrutura as medidas e os efeitos patrimoniais antes e depois da condenação. Para o pano de fundo, vale a leitura dos textos sobre efeitos patrimoniais da condenação e bloqueio de bens no processo penal. Aqui, o foco é o regime de bens — inclusive o regime aplicável à união estável.

1) Sequestro: incide sobre o bem de origem delitiva

sequestro atinge bens determinados quando há indícios veementes de que sejam produto ou proveito do crime. Como a discussão recai sobre o próprio bemnão há reserva de meação: se o imóvel foi comprado com proveito ilícito, a copropriedade ou a boa-fé do cônjuge não blindam a constrição. O ponto decisivo, porém, é probatório: o sequestro não se sustenta por presunção, exige lastro concreto de origem delitiva — especialmente no início da apuração. Em conflitos com penhoras cíveis/trabalhistas, a jurisprudência reconhece a primazia do sequestro penal por tutelar o interesse público e a efetividade da persecução.

Na união estável, se aplica a mesma lógica patrimonial do casamento conforme o regime adotado; se há indícios veementes de origem delitiva, não há reserva de meação no sequestro.

2) Arresto e hipoteca legal: garantir a reparação, com reserva de meação

Quando a finalidade é ressarcir a vítima, usam-se arresto (principalmente para bens móveis e valores) e especialização da hipoteca legal (bens imóveis). Aqui se mira o patrimônio lícito do investigadoaté o valor do dano estimado. Como a responsabilidade é pessoal, a regra é reservar a meação do cônjuge/companheiro não envolvido. Em comunhão parcial/universal, a constrição recairá, em regra, somente sobre a fração do investigado; em separação convencional/obrigatória, sobre bens exclusivamente dele/dela. Caso surja alguma discussão criminal relativa aos bens, é importante ser capaz de calcular exatamente quais são os bens expostos, e em que montante. Assim também se poderá propor a substituição da garantia por outros bens, em relação aos quais não se necessite liquidez.

3) Perda e sequestro por equivalência: importante distinção

No caso de sequestro, se o produto/proveito do crime não é localizado (ou está no exterior), é possível alcançar bens lícitos do investigado até o montante do proveito estimado. Isso vale tanto no efeito pós-sentença, como também ainda durante a investigação, como medida cautelar. Tratando-se de medida que incide sobre o patrimônio do investigado, e considerando que a responsabilidade penal é subjetiva, a meação do cônjuge/companheiro não participante deve ser resguardada (limitando a constrição à fração do investigado).

4) Confisco alargado: patrimônio do condenado x direitos de terceiros

confisco alargado (efeito pós-condenação) permite declarar a perda de bens que excedam o patrimônio compatível com a renda lícita comprovada, quando o crime tiver pena máxima superior a 6 anos. O foco recai no patrimônio do condenado (posse direta ou indireta, inclusive interpostas pessoas), com preservação dos direitos de terceiros de boa-fé. Na prática:

  • Meação: não afasta a perda de produto/proveito do crime, mas protege a fração lícita do cônjuge/companheiro não envolvido.
  • União estável: segue a mesma diretriz do regime aplicável.
  • Boa-fé: se o bem está exclusivamente em nome do cônjuge alheio ao fato (v.g. separação total) e não há indício de ocultação/simulação, ele atua, sim, como terceiro de boa-fé — e seus direitos devem ser respeitados. Se houver interposição fictícia ou conluio, perde-se a proteção.

5) Quem é “terceiro” aqui? E quando é “terceiro de boa-fé”?

No processo penal, cônjuge/companheiro é terceiro em relação ao fato criminoso — salvo quando figura como coautor/partícipe. A boa-fé se aferirá caso a caso: origem lícita dos recursos, tempo e modo de aquisição, ausência de indícios de ocultação, e regime de bens aplicável. Em bens comuns, o cônjuge não é “terceiro” na acepção civil (porque é coproprietário), mas é terceiro perante a responsabilidade pessoal do investigado — daí a reserva de meação nas garantias in personam (arresto/hipoteca/equivalência) e a inoponibilidade da meação contra o sequestro de bem ilícito.

Definir se o cônjuge/companheiro é terceiro ou terceiro de boa-fé é exercício defensivo fundamental: apenas os embargos de terceiro podem ser julgados de imediato. Caso a alegação seja a de boa-fé, a legislação processual penal exige, primeiro, o julgamento do mérito do caso penal, para depois poder avaliar se a pessoa se encontra, ou não, de boa-fé.

Conclusão

A resposta à pergunta “até onde o patrimônio do cônjuge/companheiro vai no processo penal?” depende de duas chaves: (i) de onde veio o bem (lícito × ilícito) e (ii) qual é a finalidade da medida (retirar proveito × garantir reparação). Sequestro exige indícios veementes da suposta procedência ilícita e, uma vez demonstrada a origem delitiva, a meação não protege o bem atingido. Já no caso do arresto e da especialização da hipoteca legal, pressupõe-se a responsabilidade pessoal do investigado/acusado, de modo a permitir a reserva de meação do cônjuge não envolvido. O mesmo pode ser dito quanto ao sequestro por equivalência: como não há qualquer elemento apontando à ilicitude da origem do bem atingido, somente se pode alcançar o patrimônio pessoal do investigado/acusado, permitindo-se a reserva de meação. Confisco alargado atinge o excedente incompatível do condenado, preservando terceiros de boa-fé. Técnica e prova fazem toda a diferença para delimitar riscosevitar abusos e proteger patrimônio lícito.

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