Quando alguém sofre um crime, imagina que o processo penal servirá apenas para responsabilizar o autor. No entanto, o sistema jurídico brasileiro oferece um caminho mais completo: além de buscar a condenação do réu, a vítima também pode receber uma indenização dentro do próprio processo criminal. A maioria das pessoas desconhece essa possibilidade, embora ela exista há mais de uma década e esteja prevista expressamente no Código de Processo Penal.
A reparação de danos no juízo criminal foi introduzida pela Lei 11.719/2008 e transformou a forma como a vítima participa da ação penal. Desde então, o juiz pode fixar um valor mínimo de indenização na própria sentença condenatória, assegurando que a parte lesada não precise iniciar um processo cível para ver o seu prejuízo reconhecido. Trata-se de uma mudança que valorizou a vítima e aproximou o processo penal da ideia de justiça completa — aquela que não se limita à punição, mas também se preocupa com quem sofreu as consequências do crime.
O que significa essa reparação no processo penal?
O dano causado por um crime pode ser material ou moral. O dano material corresponde ao prejuízo econômico, como a perda de um bem, um valor em dinheiro ou gastos que a vítima teve em razão do ocorrido. Já o dano moral se refere ao sofrimento emocional, ao constrangimento, à humilhação e à violação da dignidade e da paz interior. Esses dois tipos de prejuízo podem ser reconhecidos na sentença penal, desde que estejam relacionados ao fato criminoso analisado durante o processo.
O art. 387, IV, do CPP permite que esses prejuízos sejam reconhecidos no próprio processo penal. O juiz não precisa quantificar tudo: ele fixa um valor mínimo, que já é suficiente para que a vítima possa cobrar diretamente na esfera cível, de forma rápida e objetiva. A partir daí, se houver danos maiores, o restante pode ser apurado em liquidação.
Essa é uma medida que reforça o protagonismo da vítima, tema que tratamos em outro artigo do blog, dedicado ao papel da vítima como assistente de acusação e sua participação ativa no processo penal. Para quem quiser entender melhor esse aspecto, vale a leitura de “A atuação da vítima como assistente de acusação”.
Como isso funciona na prática?
Embora o procedimento seja simples para a vítima, ele depende de certos cuidados. A lei exige que o pedido de reparação esteja formulado na acusação: ou seja, precisa constar na denúncia oferecida pelo Ministério Público ou na queixa-crime apresentada pelo particular. O juiz não pode fixar a indenização por iniciativa própria. Essa é uma etapa decisiva, porque sem o pedido o tema não entra na instrução do processo penal, e o juiz fica impedido de analisar o prejuízo.
Também é necessário que a acusação apresente um valor inicial para a reparação pretendida. Esse número não engessa o juiz, que poderá ajustar o montante ao final, mas serve para dar clareza ao pedido e para que a defesa possa exercer seu direito ao contraditório.
Durante a instrução, podem ser juntados documentos que ajudem a dimensionar o dano. No caso dos danos materiais, muitas vezes basta apresentar comprovantes simples: nota fiscal do bem subtraído, recibos de despesas médicas, extratos bancários, entre outros. Já nos danos morais, a prova é mais flexível, porque muitos efeitos são subjetivos. Alguns delitos, inclusive, já são reconhecidos pelos tribunais como capazes de gerar dano moral automaticamente, como a violência doméstica e outros crimes que atingem intensamente a dignidade da vítima.
Quando a reparação é cabível? Exemplos do dia a dia
A reparação no processo penal é possível em um grande número de situações. Em crimes patrimoniais, como furto, roubo ou estelionato, o prejuízo econômico normalmente é objetivo. A vítima que teve o celular levado, que perdeu dinheiro em um golpe ou que sofreu algum dano tangível pode pedir que o valor correspondente seja fixado na sentença penal.
Há também crimes em que a principal lesão não é financeira, mas emocional. Nas agressões físicas e verbais, nos crimes de racismo, nas ofensas à honra, na violência doméstica e em outras condutas que violam a integridade psicológica, a reparação moral se mostra especialmente significativa. O dano moral, nesses casos, é reconhecido com base no próprio fato criminoso e nos seus efeitos sobre a vítima. Comprovado o fato, a ocorrência do dano moral é presumida.
Aliás, há uma relação direta entre esse tema e os efeitos patrimoniais da condenação penal, que explicamos em detalhe no artigo “Os efeitos patrimoniais da condenação penal”. A leitura complementar ajuda a entender como a decisão criminal repercute na esfera cível e na responsabilização econômica do condenado.
O STJ afetou o tema: um julgamento que deve definir claramente os parâmetros para a fixação de valor mínimo de indenização.
O tema da reparação mínima voltou ao centro do debate jurídico em razão de um julgamento muito recente no Superior Tribunal de Justiça. Em outubro de 2025, a Terceira Seção do STJ, sob relatoria do Ministro Ribeiro Dantas, decidiu afetar ao rito dos recursos repetitivos o Recurso Especial nº 2.208.052/PI. Esse movimento revela a importância prática do assunto e a necessidade de uniformizar o entendimento em todo o país.
O caso que deu origem ao repetitivo envolvia uma condenação por roubo na qual o tribunal estadual havia fixado valor mínimo de indenização com base apenas na palavra da vítima, sem produção de prova específica sobre o prejuízo. A Defensoria Pública questionou a legalidade dessa fixação e, ao analisar o recurso, o STJ reconheceu que a questão ultrapassa o caso concreto: trata-se de definir quais requisitos são indispensáveis para que o juiz penal estabeleça a reparação mínima prevista no art. 387, IV, do CPP.
No despacho de afetação, o STJ formulou a controvérsia de forma objetiva: deve o juiz fixar o valor mínimo somente quando houver (i) pedido expresso da acusação, (ii) indicação do valor pretendido e (iii) instrução probatória específica sobre o dano? Ou seria possível fixar o valor mesmo sem esses elementos?
Em breve haverá uma definição clara e de caráter nacional. É um passo relevante porque, até então, havia divergências entre turmas e tribunais estaduais, especialmente no que dizia respeito aos danos morais e aos crimes em que o prejuízo material não é facilmente mensurável.
Em síntese, o julgamento repetitivo do REsp 2.208.052/PI tem potencial para estabelecer quais parâmetros o juiz deve seguir — e, portanto, tende a tornar a reparação criminal mais previsível, mais técnica e mais coerente com as garantias de defesa e com os direitos da vítima.
Por que esse direito é importante para a vítima?
A reparação no processo penal representa um avanço significativo no modo como o sistema de justiça lida com o sofrimento causado pelo crime. A vítima deixa de ocupar um papel meramente acessório na ação penal e passa a ser reconhecida como titular de direitos que merecem tutela efetiva. Receber uma indenização mínima já na sentença evita anos de litígio na esfera cível e reduz a sensação de impunidade ou desamparo.
Além disso, a fixação do valor mínimo também funciona como forma de responsabilização mais completa do condenado, que passa a responder não apenas perante o Estado, mas também perante quem efetivamente sofreu o dano.
Quando procurar orientação jurídica
É comum que vítimas percam o direito à reparação simplesmente por falta de orientação. O pedido precisa ser incluído no momento correto, e determinadas provas precisam ser produzidas antes do fim da instrução. Por isso, buscar assistência jurídica desde o início é essencial.
Quem foi vítima de crime patrimonial, por exemplo, pode se beneficiar muito da leitura complementar de outro texto do blog, que aprofunda a importância da notícia-crime e da estratégia adequada para proteger o patrimônio lesado: “Notícia-crime e defesa de vítimas patrimoniais”.
A reparação de danos no processo penal não é um favor: é um direito previsto em lei e um instrumento importante para tornar a justiça mais humana e responsável. Quando bem utilizado, contribui para restaurar, ao menos em parte, aquilo que o crime tentou destruir.




