O que é “infidelidade patrimonial”?

Embora essa modalidade de crime não seja conhecida com tal nomenclatura no país, trata-se do que estudiosos do direito penal consideram como, muito provavelmente, o principal crime econômico da sociedade moderna. Logo se vê que o assunto não é trivial. Ao contrário: é parte indissociável da ampla gama de atos de administração e transação patrimoniais disponíveis na vida particular e na atividade pública.

A infidelidade sobre a qual se visa conscientizar o leitor é aquela que se abate sobre o patrimônio, numa situação em que a vítima – naturalmente, pois se está falando de condutas criminosas – confere a outrem – no caso, o autor do delito – a administração e/ou ingerência sobre seu patrimônio – bens, valores, cartas de crédito, fundos de investimento e toda sorte de bens imateriais dotados de valor econômico –, e acaba lesada em decorrência do comportamento daquele ao qual conferiu tamanha confiança.

Trata-se, então, de danos ao patrimônio que vêm de dentro, ou seja, agressões internas – diferentemente de casos como extorsão ou estelionato, nos quais o ataque ao patrimônio decorre de uma fonte externa –, praticadas por alguém que ocupa uma posição de confiança qualificada, que lhe confere a prerrogativa de administrar o patrimônio alheio.

Pense-se, como exemplos comuns, em gerentes de contas bancárias e investimentos diversos, diretores e presidentes de pessoas jurídicas formadas por capital de terceiros, holdings e conglomerados empresariais que possuam administração centralizada. Dentro do âmbito empresarial, os diretores e gerentes financeiros, bem como demais funcionários que administram os recursos de caixa da entidade. Na seara jurídica, advogados, quando movimentam valores relacionados a processos, ao realizar o levantamento de alvarás de quantias pertencentes aos seus clientes. Isso, claro, fora a gestão do erário público pelos agentes políticos e servidores públicos que compõe todo o volumoso corpo do Governo.

Como se percebe por meio dos exemplos acima, a entrega de alguma medida de ingerência sobre o próprio patrimônio a terceiros não pode ser considerada como algum incomum. Ao contrário, hoje em dia parece ser a regra.

No mundo

Se o ordenamento jurídico brasileiro não prevê o crime de infidelidade patrimonial de forma específica/única, diversos outros países o trazem em suas legislações há vários anos, como algo já tido por comum. É o caso (i) da Untreue, a infidelidade prevista na legislação alemã (§ 226 do Código Penal alemão), (ii) a infidelidade patrimonial na legislação portuguesa (art. 224º do Código Penal português), (iii) a infidelitá patrimoniale italiana (art. 2.634 do Código italiano), (iv) a admistracción desleal na Espanha (art. 295 do Código Penal espanhol), e (v) a administração infiel suíça (art. 158 do Código Penal suíço).

Os traços marcantes desses delitos são, basicamente, a agressão interna ao patrimônio, praticada a partir de uma posição de confiança/controle sobre o patrimônio alheio, com a violação de dever decorrente desse domínio exercido com poderes de gestão e sem supervisão intensa por parte do titular.

No Brasil

Embora se tenha identificado acima que a legislação brasileira não prevê esse crime de forma específica, em um tipo penal autônomo, há diversas manifestações esparsas de infidelidade patrimonial no Código Penal e legislação extravagante, citando-se como alguns exemplos (i) o peculato na modalidade desvio (art. 312 do Código Penal[1]), (ii) emprego irregular de verbas públicas (art. 315 CP[2]), (iii) fraudes e abusos na fundação ou administração de sociedade por ações (art. 177 CP[3]), (iv) apropriação indébita financeira (art. 5.º da Lei n.º 7.492, de 1986[4]), dentre outros.

Contudo, o crime possivelmente mais corriqueiro e popularmente conhecido que acabou por assumir contornos de infidelidade patrimonial no direito brasileiro é a apropriação indébita, prevista no art. 168 do Código Penal[5]. Diz-se “acabou por assumir contornos” porque há quem sustente que, pela redação do tipo penal, a apropriação de valores ou qualquer tipo de bem imaterial dotado de valor econômico não consistiria em apropriação indébita. Não são poucos os doutrinadores célebres que afirmam que esse crime somente existe quando alguém se apropria de coisa corpórea.

No entanto, fato é que os tribunais pátrios já aplicam o entendimento praticamente consolidado de que apropriar-se de valores, por exemplo, mantidos em conta corrente, poupança ou fundos de investimento, consiste no crime de apropriação indébita, a despeito de não haver coisa móvel corpórea.

Os questionamentos quanto à extensão do alcance do crime de apropriação indébita e o apanhado esparso de tipos penais que refletem manifestações de infidelidade patrimonial levantam o seguinte questionamento: é hora de re-sistematizar a legislação pátria quanto aos crimes patrimoniais? Por um lado, simplesmente criar um novo crime porventura acentuaria o caráter fragmentado da legislação penal brasileira. Por outro, tentar combater a infidelidade patrimonial, algo atualmente corriqueiro e já previsto de forma específica na legislação de vários outros países, pode não ser a forma mais eficiente de proteger o patrimônio particular e público.

O que fazer?

Nesse cenário, até que o legislador e o estudo crítico do direito penal convirjam em fornecer uma solução legal adequada ao problema, caberá a você, leitor, permanecer sempre vigilante, pois o conjunto de bens e valores que formam seu patrimônio não está apenas sujeito a ataques externos. O dano, por vezes, parte justamente daqueles a quem confiamos o nobre dever de guardar e administrar nossos investimentos.

Além de permanecer atento, saiba o leitor que também pode contar, caso necessário, com a ajuda da Polícia, do Ministério Público e, inclusive, da própria advocacia criminal, a fim de que busque as medidas necessárias acaso seja vitimado pela infidelidade patrimonial. Tanto a identificação e punição dos responsáveis quanto as medidas processuais necessárias para reaver eventual prejuízo causado — como por exemplo o sequestro, arresto e a hipoteca legal de bens — podem ser promovidas e requeridas por advogados que dominem os mecanismos legais disponíveis para esses fins. Feitas todas essas considerações, ora deixamos o seguinte conselho: proteja-se contra a infidelidade patrimonial, e, caso veja-se vitimado, busque o quanto antes o auxílio técnico especializado.


[1] Art. 312 – Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio: Pena – reclusão, de dois a doze anos, e multa.

[2] Art. 315 – Dar às verbas ou rendas públicas aplicação diversa da estabelecida em lei: Pena – detenção, de um a três meses, ou multa.

[3] Art. 177 – Promover a fundação de sociedade por ações, fazendo, em prospecto ou em comunicação ao público ou à assembleia, afirmação falsa sobre a constituição da sociedade, ou ocultando fraudulentamente fato a ela relativo: Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa, se o fato não constitui crime contra a economia popular.

[4] Art. 5 – Apropriar-se, quaisquer das pessoas mencionadas no art. 25 desta lei, de dinheiro, título, valor ou qualquer outro bem móvel de que tem a posse, ou desviá-lo em proveito próprio ou alheio: Pena – Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.[…] Art. 25. São penalmente responsáveis, nos termos desta lei, o controlador e os administradores de instituição financeira, assim considerados os diretores, gerentes.

[5] Art. 168 – Apropriar-se de coisa alheia móvel, de que tem a posse ou a detenção: Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa. § 1º – A pena é aumentada de um terço, quando o agente recebeu a coisa: I – em depósito necessário; II – na qualidade de tutor, curador, síndico, liquidatário, inventariante, testamenteiro ou depositário judicial; III – em razão de ofício, emprego ou profissão.

*A temática surgiu a partir da disciplina Direito Penal do Século XXI, ministrada pelos Professores Doutores Alaor Leite e Paulo César Busato, no Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR.